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Mortalidade materna e desenvolvimento: a transição obstétrica no Brasil

Maternal mortality and development: the obstetric transition in Brazil

EDITORIAL

Mortalidade materna e desenvolvimento: a transição obstétrica no Brasil

Maternal mortality and development: the obstetric transition in Brazil

João Paulo Souza

Disciplina de Medicina Social e Saúde Reprodutiva do Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: João Paulo Souza Departamento de Medicina Social Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo Avenida dos Bandeirantes, 3.900 Monte Alegre CEP: 14049-900 Ribeirão Preto (SP), Brasil

No ano 2000, os chefes de Estado de 182 países decidiram intensificar esforços para combater a extrema pobreza e promover o desenvolvimento humano. Suas resoluções foram incluídas na Declaração do Milênio e deram origem aos chamados "Objetivos de Desenvolvimento de Milênio". Esses objetivos cobrem aspectos amplos do desenvolvimento econômico e social e incluem também metas relacionadas à saúde, como a redução da mortalidade materna e a ampliação da cobertura dos serviços de saúde reprodutiva1. Redução da mortalidade materna e melhora da saúde reprodutiva fazem parte das metas dos "Objetivos de Desenvolvimento do Milênio" não apenas pelo grande número de mulheres que morrem a cada ano em decorrência de complicações da gravidez, parto e puerpério, mas principalmente porque essas mortes decorrem, em grande parte, da conjuntura social, econômica e cultural de cada país. Na medida em que os governos desenvolvem políticas públicas capazes de modificar ou atenuar os determinantes da mortalidade materna, eles atuam sobre a mortalidade materna e promovem o desenvolvimento econômico e social2,3.

As metas dos "Objetivos de Desenvolvimento do Milênio" têm em 1990 seu ano de referência. Desde meados de 1990, o mundo assistiu a uma redução de 47% da razão de mortalidade materna1. Foi considerado que os determinantes sociais e o desempenho do sistema de saúde desempenham um papel importante na mortalidade materna2,3, essa redução é importante não só devido ao número de vidas que foram poupadas nesse período (mais de 2,5 milhões de mortes maternas evitadas entre 1990 e 2010), mas também porque indica que o mundo está fazendo progressos significativos no sentido do desenvolvimento e do combate de violências estruturais, como a desigualdade entre gêneros e entre grupos étnicos. No entanto, esse progresso ainda é insuficiente, desigual e lento: estimativas sugerem que 287 mil mulheres morreram de causas relacionadas com a gravidez em todo o mundo em 20104.

A grande maioria das mortes maternas é evitável e ocorre em países em desenvolvimento. Nos países desenvolvidos, a taxa de mortalidade materna pode ser tão baixa quanto 10 óbitos maternos por 100.000 nascidos vivos; em comparação, nos países menos desenvolvidos, ela pode ser tão alta como 1.000 mortes maternas ou mais por 100.000 nascidos vivos2. Grandes disparidades são também observadas no interior dos países e quando a população é desagregada por faixas de renda ou educação2,3,5. Assim, os países, as regiões dentro dos países e grupos populacionais dentro dos países estão frequentemente em diferentes pontos do caminho para eliminar a mortalidade materna. Graças ao desenvolvimento econômico e social e à implementação de políticas que modificam os determinantes sociais da mortalidade materna (por exemplo, os programas de transferência condicional de renda) ou que remediam e atenuam os seus efeitos (por exemplo, o fortalecimento do sistema de saúde e a melhora da qualidade da assistência), os países têm apresentado uma gradual transformação dos padrões de mortalidade materna. Esse fenômeno de "transição obstétrica" é caracterizado pela tendência secular de passagem de um padrão de alta mortalidade materna para baixa mortalidade materna, de predominância das causas obstétricas diretas de mortalidade materna para uma proporção crescente de causas indiretas associadas às doenças crônico-degenerativas, envelhecimento da população materna e modificação da história natural da gravidez e do parto para um padrão de institucionalização da assistência, aumento das taxas de intervenção obstétrica e eventual excesso de medicalização6. Os estágios da transição obstétrica estão resumidos no Quadro 1.


Com a aproximação de 2015 (ano que em se realiza a avaliação final dos progressos em relação aos "Objetivos de Desenvolvimento do Milênio"), é constatado que, apesar dos avanços significativos, apenas uma pequena parcela dos países conseguiu atingir a meta proposta de redução de mortalidade materna1. A mortalidade materna continua a ser uma tragédia global. Entretanto, o progresso observado inspira a comunidade internacional a persistir em seu esforço e a vislumbrar como possibilidade a eliminação das mortes maternas evitáveis nas próximas décadas. Durante o ano de 2014, deverão ser definidas as metas para o próximo ciclo de desenvolvimento (2015 - 2035), e tem havido uma mobilização no sentido de se adotar uma meta universal de razão de mortalidade materna inferior a 50 mortes maternas para cada 100.000 nascidos vivos7. Ou seja, colocar todos os países no estágio IV da transição obstétrica passaria a ser uma meta da agenda de desenvolvimento após 2015. Para os países que estejam atualmente próximos ao estágio IV ou que já estejam no estágio IV, a meta a ser perseguida deverá ser o fim das mortes maternas evitáveis (Estágio V).

O Ministério da Saúde estima que ocorram no país cerca de 70 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos e, a despeito dos avanços que ocorreram no país na última década, a razão de mortalidade materna encontrou-se estagnada ao redor desse número durante esse período8. Em decorrência dessa estagnação, a meta de redução da mortalidade materna no Brasil não será alcançada em 2015 como parte dos "Objetivos de Desenvolvimento do Milênio". A redução adicional da mortalidade materna requer não apenas o enfrentamento efetivo das violências estruturais que ainda assolam o país, mas também um salto qualitativo na atenção prestada às gestantes. É fundamental que as diferentes instâncias de governo garantam o financiamento e a melhora de gestão necessários para o salto qualitativo que se encontra em pauta. Juntamente com as ações humanizadoras da assistência, intervenções baseadas na vigilância e resposta da morbidade materna grave serão fundamentais para fortalecer o desempenho dos serviços de saúde. Mas se ações governamentais e nos serviços de saúde são essenciais, não se deve eximir o papel dos profissionais de saúde e suas corporações. A FEBRASGO e suas federadas podem e devem trazer essa questão para o centro de sua agenda. Necessitamos de um pacto de todos para melhorar a qualidade do atendimento obstétrico no país e para que possamos avançar na construção de um Brasil livre de mortes maternas evitáveis.

Recebido: 14/10/2013

Aceito com modificações: 11/12/2013

  • 1. United Nations [Internet]. Millennium Development Goals (MDGs). New York: UN; 2013 [cited 2013 Oct 2]. Available from: http://www.un.org/millenniumgoals/
  • 2
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  • 3
    United Nations Development Programme [Internet]. A social determinants approach to maternal health. New York: UNDP; 2011 [cited 2012 Dec 20]. Available from: http://www.undp.org/content/dam/undp/library/Democratic%20Governance/Discussion %20Paper%20MaternalHealth.pdf
  • 4. World Health Organization. UNICEF. United Nations Population Fund. World Bank [Internet]. Trends in maternal mortality: 1990 to 2010. Geneva: WHO; 2012 [cited 2013 Sep 15]. Available from: http://whqlibdoc.who.int/publications/2012/9789241503631_eng.pdf
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  • 6. Souza JP, Tunçalp Ö, Vogel JP, Bohren M, Widmer M, Oladapo O, et al. Obstetric Transition: the pathway towards ending preventable maternal deaths. BJOG. In press 2014.
  • 7. Bustreo F, Say L, Koblinsky M, Pullum TW, Temmerman M, Pablos-Méndez A. Ending preventable maternal deaths: the time is now. Lancet Global Health. 2013;1(4):e176.
  • 8
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2012. Capítulo 14: Mortalidade materna no Brasil: principais causas de morte e tendências temporais no período de 1990 a 2010; p. 345-57.
  • Endereço para correspondência:
    João Paulo Souza
    Departamento de Medicina Social
    Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
    Avenida dos Bandeirantes, 3.900
    Monte Alegre
    CEP: 14049-900
    Ribeirão Preto (SP), Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
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