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Validade de construto da versão brasileira do Inventário Espectral de Externalização: evidências a partir de uma amostra de estudantes universitários

Construct validity of the Brazilian version of the Externalizing Spectrum Inventory: evidence from a university student sample

Resumos

CONTEXTO: Externalização é uma dimensão das diferenças individuais que dá substrato e unifica traços impulsivos e agressivos de personalidade a transtornos mentais relacionados ao uso de substância e à conduta antissocial. OBJETIVOS: O presente estudo objetivou apresentar indicadores de validade de construto da versão brasileira do Inventário Espectral de Externalização. MÉTODO: Trata-se de um estudo psicométrico de orientação correlacional. Foram utilizadas duas técnicas clássicas de representação de construto: análise exploratória de fatores comuns e análise de consistência interna. A amostra consistiu de 258 participantes de ambos os sexos, provenientes de diferentes cursos universitários de duas instituições públicas do estado de Minas Gerais. RESULTADOS: A análise fatorial resultou em um modelo de um fator de segunda ordem (Externalização) com três fatores de primeira ordem (dimensões de agressão, de uso de substância e de impulsividade/alienação). Os coeficientes alfa mostraram-se bastante elevados, com índices acima de 0,9 tanto para os três fatores de primeira ordem quanto para o fator geral. CONCLUSÃO: Combinados, os resultados trazem evidências de validade e de fidedignidade para a versão brasileira do Inventário Espectral de Externalização no que tange à sua aplicabilidade a estudantes universitários.

Inventário Espectral de Externalização; psicometria; psicopatologia; personalidade


BACKGROUND: Externalizing is a dimension of individual differences that undergirds and unites aggressive and impulsive personality traits to psychopathological disorders related to substance use and antisocial behavior. OBJECTIVES: The present study aims to establish parameters of construct validity for the Brazilian version of the Externalizing Spectrum Inventory. METHOD: This is a psychometrical correlacional study design. Two classical techniques of construct representation were implemented: unweighted least squares exploratory factor analysis and internal consistency analysis. The sample consisted of 258 participants of both sexes, from different undergraduate majors in two public universities in the state of Minas Gerais. RESULTS: As expected in theoretical grounds, common factor analysis revealed a one second-order factor (externalizing dimension) with three subfactor structure (substance, antisocial and impulsivity/alienation dimensions). The alfa coefficients were very high, with indexes greater than 0,9 for the three subfactor as well as for the general factor. DISCUSSION: Taken together, results bring evidences of validity and reliability of the Brazilian version of the Externalizing Spectrum Inventory in regard to it applicability in university students.

Externalizing Spectrum Inventory; psychometrics; psychopathology; personality


ARTIGO ORIGINAL

Validade de construto da versão brasileira do Inventário Espectral de Externalização: evidências a partir de uma amostra de estudantes universitários

Construct validity of the Brazilian version of the Externalizing Spectrum Inventory: evidence from a university student sample

Hudson Wander de CarvalhoI; Christopher John PatrickII; Roberto Frederick KruegerIII; Kristian Erik MarkonIV; Ângela Maria Vieira PinheiroV

IUniversidade Federal de São Paulo (Unifesp)

IIFlorida State University (FSU)

IIIUniversity of Washington (UW)

IVUniversity of Iowa

VUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Hudson W. de Carvalho Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Psiquiatria, Núcleo de Estatística e Metodologia Aplicada (Unifesp-Nemap). Rua Dr. Bacelar, 368, cj. 142, Vila Clementino – 04026-001 – São Paulo, SP. E-mail: hdsncarvalho@yahoo.com

RESUMO

CONTEXTO: Externalização é uma dimensão das diferenças individuais que dá substrato e unifica traços impulsivos e agressivos de personalidade a transtornos mentais relacionados ao uso de substância e à conduta antissocial.

OBJETIVOS: O presente estudo objetivou apresentar indicadores de validade de construto da versão brasileira do Inventário Espectral de Externalização.

MÉTODO: Trata-se de um estudo psicométrico de orientação correlacional. Foram utilizadas duas técnicas clássicas de representação de construto: análise exploratória de fatores comuns e análise de consistência interna. A amostra consistiu de 258 participantes de ambos os sexos, provenientes de diferentes cursos universitários de duas instituições públicas do estado de Minas Gerais.

RESULTADOS: A análise fatorial resultou em um modelo de um fator de segunda ordem (Externalização) com três fatores de primeira ordem (dimensões de agressão, de uso de substância e de impulsividade/alienação). Os coeficientes alfa mostraram-se bastante elevados, com índices acima de 0,9 tanto para os três fatores de primeira ordem quanto para o fator geral.

CONCLUSÃO: Combinados, os resultados trazem evidências de validade e de fidedignidade para a versão brasileira do Inventário Espectral de Externalização no que tange à sua aplicabilidade a estudantes universitários.

Palavras-chave: Inventário Espectral de Externalização, psicometria, psicopatologia, personalidade.

ABSTRACT

BACKGROUND: Externalizing is a dimension of individual differences that undergirds and unites aggressive and impulsive personality traits to psychopathological disorders related to substance use and antisocial behavior.

OBJECTIVES: The present study aims to establish parameters of construct validity for the Brazilian version of the Externalizing Spectrum Inventory.

METHOD: This is a psychometrical correlacional study design. Two classical techniques of construct representation were implemented: unweighted least squares exploratory factor analysis and internal consistency analysis. The sample consisted of 258 participants of both sexes, from different undergraduate majors in two public universities in the state of Minas Gerais.

RESULTS: As expected in theoretical grounds, common factor analysis revealed a one second-order factor (externalizing dimension) with three subfactor structure (substance, antisocial and impulsivity/alienation dimensions). The alfa coefficients were very high, with indexes greater than 0,9 for the three subfactor as well as for the general factor.

DISCUSSION: Taken together, results bring evidences of validity and reliability of the Brazilian version of the Externalizing Spectrum Inventory in regard to it applicability in university students.

Keywords: Externalizing Spectrum Inventory, psychometrics, psychopathology, personality.

Introdução

Denomina-se taxonomia o procedimento científico de classificação de elementos e fenômenos naturais, assim como os métodos envolvidos para tal fim. No que tange à Psiquiatria e à Psicologia médica, a taxonomia deve ser compreendida como uma área da ciência que objetiva a construção de um sistema válido de classificação para os transtornos mentais de maneira a organizá-los com base em pressupostos teóricos1. Todavia, os sistemas dominantes de classificação dos transtornos mentais são pretensamente ateóricos2,3, sendo, desse modo, puramente descritivos. Além disso, a taxonomia psiquiátrica tem se mostrado um tópico altamente controverso4-7, de modo que diferentes modelos taxonômicos8-10 e definições para o construto transtorno mental7,11-13 têm sido propostos com o objetivo explícito de superação paradigmática.

Dentre os diferentes modelos taxonômicos encontrados na literatura psiquiátrica e psicológica, um modelo dimensional de base biológica denominado de Modelo Hierárquico de Internalização/Externalização tem recebido especial ênfase tanto em pesquisas empíricas14-17 quanto teóricas8-10,18-20, que o destacam como um norteador para o desenvolvimento da quinta edição do Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM-V) da Associação Americana de Psiquiatria.

Emergência do Modelo Hierárquico de Internalização/Externalização

A emergência do Modelo Hierárquico de Internalização/Externalização se deu com o desenvolvimento de estudos epidemiológicos de base populacional cujo objetivo central era o exame da estrutura latente de transtornos mentais relacionados ao uso de substâncias, à conduta antissocial, à depressão, à ansiedade e à fobia, por meio da aplicação de modelagem por equações estruturais15-17. Esses estudos indicaram que o padrão de coocorrência entre os citados transtornos mentais pode ser explicado por dois fatores correlacionados denominados de Internalização e de Externalização. Enquanto Internalização explicou a covariância entre transtornos depressivos, de ansiedade e fóbicos, Externalização ocupou-se da variância comum entre os transtornos relacionados à conduta antissocial e ao uso de substâncias. Recentemente, o Modelo Hierárquico de Internalização/Externalização foi replicado com sucesso e amplamente discutido em um estudo metanalítico9.

Investigações posteriores revelaram que traços de personalidade ligados à instabilidade afetiva e ao controle de impulsos também seriam indicadores latentes das dimensões de Internalização e de Externalização, respectivamente21,22. Adicionalmente, há evidências que sugerem que ambas as dimensões são amplamente herdadas14,23 e, recentemente, um modelo endofenotípico de base neurofisiológica foi conjecturado24.

Assim, a definição dos construtos se ampliou de modo a abranger tanto síndromes psicopatológicas quanto traços de personalidade. Internalização e Externalização devem, portanto, ser definidas como dimensões altamente hereditárias de vulnerabilidade psicopatológica que explicam as associações entre agrupamentos de traços de personalidade e transtornos mentais, unificando-os por meio de um modelo taxonômico conciso, empiricamente fundamentado e de base psicobiológica.

A adoção do Modelo Hierárquico de Internalização/Externalização traz contribuições importantes para o entendimento e para o status científico tanto da taxonomia psiquiátrica quanto da taxonomia da personalidade, por três razões principais. Primeiramente, o Modelo Hierárquico de Internalização/Externalização organiza seus elementos com base em seus determinantes etiológicos comuns, evoluindo, desse modo, de um modelo puramente descritivo – como os sistemas de classificação DSM e CID – para um de base teórico-explicativa. Em segundo lugar, o modelo unifica e explica a relação entre construtos centrais e entendimento do psiquismo, como personalidade e psicopatologia, que, apesar de frequentemente associados em pesquisas empíricas25-27, apresentam desenvolvimentos teóricos e repercussões práticas bastante independentes28. Em terceiro e último lugar, o modelo soluciona uma série de impasses práticos e conceituais inerentes aos sistemas classificatórios dominantes, como em relação à controversa definição dos transtornos mentais como fenômenos dimensionais ou discretos18,19, ou quanto ao significado da comorbidade psiquiátrica9.

Recentemente, o espectro da Externalização foi delineado por meio de um estudo de orientação psicométrica29. Esse estudo culminou no desenvolvimento e na validação do Inventário Espectral de Externalização para o contexto norte-americano, cujos procedimentos metodológicos e resultados serão descritos a seguir.

O Inventário Espectral de Externalização: origem, desenvolvimento e procedimentos de validação de construto

A origem do Modelo Espectral de Externalização situa-se em um estudo de genética comportamental desenvolvido por Krueger et al.23. Os autores analisaram a estrutura fatorial de dados diagnósticos (transtorno de conduta, transtorno de personalidade antissocial, dependência de álcool e drogas) e psicométricos (dimensão de controle de impulsos) via análise fatorial confirmatória em uma ampla amostra de gêmeos monozigóticos e dizigóticos de ambos os sexos. Os resultados indicaram que uma dimensão geral (fator de Externalização) explicou mais do que 80% da variância genética aditiva, enquanto variáveis ambientais não compartilhadas explicaram a maior parte da variância genética residual. O referido estudo avançou na conceitualização do Modelo Espectral de Externalização por ter demonstrado que uma única dimensão hereditária de vulnerabilidade contribui para o desenvolvimento de diferentes transtornos mentais e traços de personalidade relacionados à tríade impulsividade, uso de substâncias e conduta antissocial.

Subsequentemente, Krueger et al.29 desenvolveram um estudo psicométrico que avaliou a dimensão de Externalização sob uma ótica taxométrica. Para tanto, foi elaborado um conjunto amplo de itens de autopreenchimento baseados em construtos candidatos à constituição do espectro da Externalização. O conteúdo dos itens foi determinado por meio de um processo interativo que envolveu diferentes fontes de informação (pesquisas, critérios diagnósticos, testes psicométricos de personalidade e definições operacionais propostas pela equipe de pesquisa). Análises psicométricas e estruturais foram aplicadas em três etapas de coleta de dados com amostras independentes, a fim de refinar os itens, identificar agrupamentos unidimensionais e delinear um modelo estrutural que acomodasse bem os dados. Esse procedimento resultou em 23 escalas/construtos que compõem simultaneamente o Inventário Espectral de Externalização e o espectro conceitual da dimensão de Externalização. A tabela 1 pormenoriza o domínio conceitual e o número de itens referentes a cada escala que compõe a versão final do Inventário Espectral de Externalização.

Todas as escalas apresentaram indicadores de fidedignidade substancialmente elevados, de maneira que a maioria alcançou índices ρ superiores a 0.9. Os resultados da análise fatorial confirmatória evidenciaram que as 23 escalas apresentaram cargas fatoriais substanciais em um fator superordenado (Externalização), e a variância residual de algumas escalas foi explicada por duas dimensões subordenadas independentes. Um dos fatores subordenados foi determinado pela variância residual das escalas de conteúdo antissocial (agressões, honestidade, busca de sensações, rebeldia) e o outro fator, pela variância residual das escalas de problemas com substâncias e de uso de substâncias. A tabela 2 descreve a estrutura fatorial delineada para a versão americana do Inventário Espectral de Externalização (para maior detalhamento, ver Krueger et al.29).

As escalas do Inventário Espectral de Externalização apresentaram distribuição normal e, quando observadas separadamente, demonstraram sensibilidade diferencial no que tange à avaliação de tendências à Externalização em indivíduos com diferentes graus de manifestação. A escala de uso de maconha, por exemplo, mostrou-se hábil em diferenciar pessoas que se localizam na distribuição média do traço; já as escalas de problemas com drogas e de agressão destrutiva são mais sensíveis às diferenças individuais localizadas no extremo de gravidade da distribuição do traço. Escalas como busca de excitação se mostraram discriminativas em qualquer grau de manifestação do traço.

Recentemente, o Inventário Espectral de Externalização foi adaptado e validado para um contexto brasileiro30. A descrição do procedimento de adaptação do referido instrumento assim como os dados a respeito da consistência interna de suas escalas estão disponibilizados em um trabalho já publicado31. Os dados ora apresentados se referem à mesma base de dados que permitiu a realização dos estudos supracitados. O objetivo do presente manuscrito é o de descrever o estudo de validade (validade fatorial) e de confiabilidade (consistência interna) da versão brasileira do Inventário Espectral de Externalização em uma amostra de estudantes universitários mineiros, por meio de procedimentos analíticos exploratórios.

Método

Participantes

Participaram voluntariamente do presente estudo 258 estudantes universitários de ambos os sexos (39,1% de homens). Os participantes eram originários de diferentes instituições universitárias públicas e de diferentes áreas de formação acadêmica, de maneira que 16,7% eram estudantes da área de saúde (Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional), 45,7%, da área de ciências humanas (Antropologia, Comunicação Social, Letras e Psicologia) e 37,6%, da área de artes (Artes Cênicas, Design Gráfico e Design de Produtos). A tabela 3 descreve mais detalhadamente as características da amostra.

Instrumento

O Inventário Espectral de Externalização é um instrumento de autopreenchimento composto por 415 afirmativas que se organizam em 23 escalas. As respostas são mensuradas por uma escala Likert de quatro pontos: verdadeiro; em grande parte verdadeiro; em grande parte falso e falso. O tempo aproximado de sua aplicação em estudantes universitários foi de 50 minutos.

Procedimentos

A coleta e a tabulação dos dados foram conduzidas por quatro estudantes de graduação do curso de Psicologia da UFMG, que, além de terem concluído as disciplinas obrigatórias de avaliação psicológica, foram devidamente treinados no procedimento delineado para a administração do Inventário Espectral de Externalização. Os dados foram tabulados e analisados por meio da 14ª versão do aplicativo SPSS para Windows.

Os participantes preencheram voluntariamente os inventários durante o período letivo, em sala de aula, nos turnos matutino e vespertino. Além disso, nenhuma informação que possibilitasse a identificação dos participantes foi solicitada, garantindo total anonimato e encorajando, desse modo, a veracidade das respostas.

Previamente à coleta de dados, procurou-se obter não somente o consentimento dos diretores das unidades acadêmicas, como também a dos professores, que permitiram a utilização de seu horário de aula para a realização da pesquisa. Ainda, todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, aprovado pelo Comitê de ética da UFMG previamente ao início da coleta de dados (Processo ETIC nº 090/06).

Análise dos dados

Análise exploratória de fatores comuns (AEFC) e análise da consistência interna por meio da estimação do coeficiente alfa foram as técnicas estatísticas escolhidas para avaliar a dimensionalidade/estrutura latente e a consistência interna/homogeneidade do Inventário Espectral de Externalização, respectivamente. As referidas técnicas foram selecionadas em virtude de seu valor para a psicometria no que tange à validade de construto32-34. As análises estruturais tiveram como base o escore geral obtido pelos participantes nas 23 escalas do Inventário Espectral de Externalização, somando-se a totalidade dos itens referentes a cada faceta.

A AEFC foi efetivada por meio de um estimador denominado análise de quadrados mínimos não ponderados, por causa de sua superioridade estatística em relação a outros métodos de estimação fatorial com dados contínuos e por não apresentar pressupostos ligados à distribuição da amostra35,36.

Os fatores de primeira ordem foram estimados por meio de um procedimento de rotação oblíqua denominado de Promax (kappa = 4). As correlações entre os fatores foram reparametrizadas como indicadoras de um fator geral de segunda ordem. O número de fatores e o ajuste do modelo estimado foram avaliados com base em indicadores clássicos: presença de cargas multifatoriais; gráfico de scree; análise da tabela de comunalidades e inteligibilidade dos fatores.

A análise da consistência interna teve como base a solução fatorial encontrada para o Inventário Espectral de Externalização. Assim, estimaram-se os coeficientes alfa tanto para os fatores de primeira ordem quanto para o fator geral. A análise de fidedignidade para cada uma das 23 escalas do Inventário Espectral de Externalização está disponibilizada em Carvalho30 e Carvalho et al.31.

Resultados

Estrutura fatorial

Todos os indicadores relativos à adequação da amostra apontam para a presença de variabilidade e multicolinearidade suficientes na matriz de dados para a implementação da AEFC. O coeficiente de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) apresentou magnitude aceitável (0.872), e o teste Bartlett de esfericidade foi significativo (p = 0.000). Os coeficientes obtidos por meio do cálculo da medida de adequação da amostra (MAS) se mostraram acima de 0.7 para todas as escalas, de forma que o índice menos expressivo foi o da escala de problemas com maconha (MAS = 0.785) e o mais expressivo, o da escala de busca de excitação (MAS = 0.933).

O teste de scree (autovalores iniciais maiores que uma unidade) e a interpretação da tabela de comunalidades indicaram a presença de quatro fatores de primeira ordem. Todavia, um modelo tetrafatorial produziu uma solução difícil de ser interpretada em virtude da intensa presença de cargas multifatoriais. Além disso, o quarto fator extraído parecia um artefato estatístico, fruto de variância-erro, tanto por não contribuir significativamente para a explicação da variância comum após a rotação (3,9% da variância total após rotação) quanto pela dificuldade de compreender o seu significado psicológico. Desse modo, extrai-se um modelo de três fatores correlacionados.

A solução trifatorial se mostrou parcimoniosa, inteligível e com apenas uma carga multifatorial. O primeiro fator explicou a covariância entre as escalas de uso de substâncias, de problemas com substâncias, furto e rebeldia, de maneira que a escala de uso de drogas apresentou a carga mais expressiva (0.973) e a de furto, a menos expressiva (0.377). O segundo fator explicou a covariância entre as escalas de impulsividade e de alienação, e urgência impaciente (0.890) foi a escala que mais fortemente caracterizou o fator e busca de excitação (0.336), a que apresentou a mais fraca associação com ele. O terceiro fator explicou a covariância entre as escalas que avaliam diferentes tipos de agressão e traços antissociais, de modo que a escala mais associada ao fator foi a de agressão destrutiva (0.867) e a que menor associação apresentou foi a de fraude (0.481). As correlações foram moderadas entre o primeiro e o segundo fator (0.402) e entre o primeiro e o terceiro fator (0.488). Já uma associação entre o segundo e o terceiro fator se mostrou mais substancial (0.65). O primeiro fator foi rotulado de vulnerabilidade ao uso nocivo de substância, o segundo fator, de controle de impulsos e de alienação, e o terceiro fator, de vulnerabilidade antissocial. A tabela 4 traz a matriz fatorial rotada e a porcentagem total de variância explicada pelos fatores, individualmente. Cargas fatoriais acima de 0.32 foram consideradas significativas com base nas recomendações de Costello e Osborne37 e, por essa razão, destacadas.

Os fatores extraídos foram redimensionados como indicadores latentes de um fator geral, de segunda ordem. Como esperado, um fator foi suficiente para explicar a covariância entre os fatores de primeira ordem (58,87% da variância total), sendo denominado de fator de Externalização. O fator de vulnerabilidade antissocial apresentou a mais intensa associação com o fator geral (0.871), seguido pelo de vulnerabilidade ao uso nocivo de substâncias (0.668) e pelo de controle de impulsos e alienação (0.531). A figura 1 traz uma representação visual da estrutura fatorial modelada: um fator de segunda ordem explica a variância comum entre os três fatores de primeira ordem.


Consistência interna

Os coeficientes alfa apresentaram magnitude admirável tanto para os fatores de primeira ordem quanto para o fator de segunda ordem. O fator de vulnerabilidade ao uso nocivo de substâncias apresentou um alfa de 0.975, o fator de controle de impulsos e alienação apresentou um alfa de 0.967 e o fator de vulnerabilidade antissocial, um alfa de 0.948. O fator de Externalização apresentou um alfa de 0.983. A tabela 5 traz os coeficientes alfa e o número de itens para os fatores extraídos.

Os itens de número 86 (Eu já injetei drogas) e 387 (O meu hábito de beber já me causou problemas com a lei), componentes do fator de vulnerabilidade ao uso nocivo de substâncias, e os itens de número 61 (Eu já usei uma arma em uma briga), 101 (Eu já deixei de pagar a pensão alimentícia), 117 (Eu já comprei coisas usando um cartão de crédito ou seu número roubado), 208 (Eu já usei uma arma para conseguir algo que eu desejava) e 271 (Eu já fui indiciado(a) por agressão), referentes ao fator de vulnerabilidade antissocial, foram automaticamente excluídos da análise de consistência interna por não terem apresentado variabilidade quanto às respostas dadas pelos participantes da pesquisa (100% de respostas negativas).

Discussão

Os sistemas de classificação em Psiquiatria e em Psicologia da Personalidade podem ser considerados empreendimentos científicos em processo de construção. As críticas acerca dos modelos dominantes de classificação dos transtornos mentais2,3 vão desde o modo como são definidos os transtornos mentais até o perfil ateórico da organização dos manuais diagnósticos4-7,12,18. Com o objetivo de superar tais limitações, um modelo taxonômico hierárquico bidimensional, denominado Modelo Hierárquico de Internalização/Externalização, tem sido testado e aperfeiçoado empiricamente em pesquisas tanto empíricas15-17 quanto teóricas8,9. No que tange à dimensão de Externalização, recentemente, um modelo taxonômico (Modelo Espectral de Externalização) amplo e contínuo, constituído tanto por indicadores psicopatológicos quanto por traços de personalidade, foi delineado por meio de um procedimento psicométrico, resultando na elaboração do Inventário Espectral de Externalização23. O presente estudo objetivou avaliar a validade e a fidedignidade desse inventário por meio da aplicação de procedimentos psicométricos clássicos de representação de construto (validação fatorial e análise de fidedignidade/consistência interna) em uma amostra de estudantes universitários do estado de Minas Gerais.

O modelo fatorial delineado resultou em uma estrutura de um fator geral com três fatores de primeira ordem. Conforme as expectativas conceituais, o fator geral foi denominado de fator de Externalização. Os fatores de primeira ordem foram rotulados como vulnerabilidade antissocial, vulnerabilidade ao uso nocivo de substâncias e controle de impulsos e alienação, conforme o seu conteúdo. Adicionalmente, os coeficientes alfa se mostraram bastante elevados, tanto para os fatores de primeira ordem quanto para o fator de segunda ordem.

Combinados, os resultados trazem evidências de validade e de fidedignidade para a versão brasileira do Inventário Espectral de Externalização no que tange à sua aplicabilidade a estudantes universitários. Adicionalmente, o presente estudo contribui para o entendimento da relação latente entre a impulsividade, o uso nocivo de substâncias e a conduta antissocial, por mostrar que a variância comum entre medidas heterogêneas dos referidos construtos pode ser explicada por um fator geral de vulnerabilidade, denominado de fator de Externalização.

Este estudo difere do de Krueger et al.23 com relação ao objetivo, ao procedimento de amostragem e às técnicas estatísticas implementadas. Tais diferenças, que serão pormenorizadas a seguir, restringem a comparabilidade entre os dois trabalhos, explicam as diferenças encontradas entre eles e deflagram algumas limitações da presente investigação.

O estudo americano23 teve como meta central delinear um modelo taxonômico amplo e quantitativo do espectro da Externalização, sendo o Inventário Espectral de Externalização o resultado de uma pesquisa taxométrica básica, e não a sua meta. Para tanto, itens foram elaborados com o intuito de mensurar os principais elementos constitutivos do referido espectro em uma escala métrica comum que possibilitasse uma eficiente coleta de dados em uma amostra ampla e diversificada. As técnicas estatísticas empregadas – modelagem por equações estruturais e análise do funcionamento diferencial dos itens – permitiram delinear e testar o ajuste de diferentes modelos latentes para o espectro da Externalização por meio de indicadores inferenciais de ajuste de modelo. Ademais, outros indicadores psicométricos – o funcionamento e a precisão de cada uma das escalas que compõe o inventário – foram estimados por meio de métodos psicométricos modernos.

Contrastivamente, o estudo brasileiro apresentou um caráter eminentemente exploratório, cuja meta central residiu na análise psicométrica do Inventário Espectral de Externalização para um contexto específico, o de universitários de Belo Horizonte. Ainda, os procedimentos estatísticos executados se referem ao exame da validade de construto segundo a psicometria clássica. Desse modo, a presente investigação não deve ser posicionada como uma replicação do estudo de Krueger et al.23.

Apesar de evidência empírica38 mostrar que diferentes tipos de amostra deflagram estruturas fatoriais substancialmente semelhantes, destaca-se que o caráter homogêneo dos participantes da presente pesquisa pode ter limitado o poder de generalização dos resultados. Tal limitação é deflagrada pela ausência de variabilidade em alguns itens, especificamente aqueles delineados para avaliar manifestações mais graves da dimensão de externalização, pela análise de consistência interna. Por essa razão, enfatizou-se a importância de se desenvolver pesquisas em que as propriedades psicométricas da versão brasileira do Inventário Espectral de Externalização sejam testadas em amostras amplas e casuais, assim como em amostras clínicas, incluindo indivíduos em situação prisional e em tratamento em decorrência do uso de substâncias.

Um importante avanço do presente estudo no que tange à mensuração das diferenças individuais em externalização se refere ao caráter taxonômico amplo do Inventário Espectral de Externalização. As escalas e os itens do inventário representam a operacionalização de todo o espectro da externalização, desde suas manifestações mais suaves, cotidianas e normais às mais graves, raras e psicopatológicas. Nenhum outro instrumento foi construído com o referido objetivo e, portanto, não há outra medida do espectro da externalização, mas apenas instrumentos que avaliam suas facetas isoladamente. Assim, destaca-se o Inventário Espectral de Externalização como o único instrumento avaliativo do espectro da externalização, apresentando várias aplicações possíveis para clínicos e pesquisadores39.

Agradecimento

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo financiamento.

Recebido: 2/9/2009

Aceito: 22/10/2009

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  • Endereço para correspondência:
    Hudson W. de Carvalho
    Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Psiquiatria,
    Núcleo de Estatística e Metodologia Aplicada (Unifesp-Nemap).
    Rua Dr. Bacelar, 368, cj. 142, Vila Clementino –
    04026-001 – São Paulo, SP.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2010
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Recebido
      02 Set 2009
    • Aceito
      22 Out 2009
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