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Uso indevido de benzodiazepínicos: um estudo com informantes-chave no município de São Paulo

Uso indebido de Benzodiazepínicos: un estudio con informantes-clave en el municipio de São Paulo

Misuse of benzodiazepines: a study among key informants in São Paulo city

Resumos

Este estudo teve por objetivo compreender a prática de prescrição, dispensação e uso prolongado de benzodiazepínicos, a partir da visão de profissionais de saúde e de usuários crônicos dessas substâncias. A amostra foi composta por técnica de bola de neve, totalizando19 informantes-chave. As entrevistas semi-estruturadas foram gravadas e transcritas para análise. A maioria dos entrevistados relatou ser freqüente a obtenção de prescrição de benzodiazepínicos por solicitações junto aos médicos, sem necessidade de consulta formal. Os usuários relataram histórico de uso prolongado (entre 2 e 8 anos) com finalidades outras que não apenas a terapêutica. Enfatizaram também a facilidade em adquirir a medicação e a falta de orientação médica sobre os cuidados necessários durante o tratamento. O estudo sugere que a ocorrência de uso indevido envolve não apenas o sistema de controle da dispensação, mas uma série de outros fatores, entre os quais as atitudes dos profissionais de saúde.

ansiolíticos; conhecimentos, atitudes e prática em saúde


Este estudio tuvo por objetivo comprender la práctica de prescripción, dispensación y uso prolongado de benzodiazepínicos, a partir de la visión de profesionales de la salud y de usuarios crónicos de esas sustancias. La muestra fue compuesta por técnica de bola de nieve, totalizando19 informantes-clave. Las entrevistas semiestructuradas fueron grabadas y transcritas para análisis. La mayoría de los entrevistados relató ser frecuente la obtención de prescripción de benzodiazepínicos por solicitaciones ante los médicos, sin necesidad de consulta formal. Los usuarios relataron histórico de uso prolongado (entre 2 y 8 años) con otras finalidades que no apenas la terapéutica. Enfatizaron también la facilidad en adquirir la medicación y la falta de orientación médica sobre los cuidados necesarios durante el tratamiento. El estudio sugiere que el acontecimiento de uso indebido involucra no apenas al sistema de control de la dispensación, pero también una serie de otros factores, entre los cuales las aptitudes de los profesionales de la salud.

agentes ansiolíticos; conocimientos, actitudes y práctica en salud


The aim of this study was to understand the practice of prescription, dispensation and prolonged use of benzodiazepines, from the point of view of health care professionals and of chronic users of these substances. The sample group was formed using the snowball technique, totaling 19 key-informants. The semi-structured interviews were recorded and transcribed for analysis. Most of the interviewees reported frequent benzodiazepine prescriptions through requests made to doctors, without the need for a formal appointment. The users reported a history of prolonged use (between 2 and 8 years) for purposes other than the simple therapeutic purpose. They also emphasized the ease in acquiring the medication and the lack of medical counseling about the necessary precautions during treatment. The study suggests that the occurrence of misuse involves not only the dispensation control system, but also a series of other factors, including the attitudes of health care professionals.

anti-anxiety agents; health knowledge, altitudes, practice


ARTIGO ORIGINAL

Uso indevido de benzodiazepínicos: um estudo com informantes-chave no município de São Paulo

Misuse of benzodiazepines: a study among key informants in São Paulo city

Uso indebido de Benzodiazepínicos: un estudio con informantes-clave en el municipio de São Paulo

Paula OrlandiI; Ana Regina NotoII

IMédica formada pela Universidade Federal de São Paulo, Ex-bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo

IIProfessor Afiliado da Universidade Federal de São Paulo, Pesquisador do Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas - CEBRID - Departamento de Psicobiolgia da Universidade Federal de São Paulo

RESUMO

Este estudo teve por objetivo compreender a prática de prescrição, dispensação e uso prolongado de benzodiazepínicos, a partir da visão de profissionais de saúde e de usuários crônicos dessas substâncias. A amostra foi composta por técnica de bola de neve, totalizando19 informantes-chave. As entrevistas semi-estruturadas foram gravadas e transcritas para análise. A maioria dos entrevistados relatou ser freqüente a obtenção de prescrição de benzodiazepínicos por solicitações junto aos médicos, sem necessidade de consulta formal. Os usuários relataram histórico de uso prolongado (entre 2 e 8 anos) com finalidades outras que não apenas a terapêutica. Enfatizaram também a facilidade em adquirir a medicação e a falta de orientação médica sobre os cuidados necessários durante o tratamento. O estudo sugere que a ocorrência de uso indevido envolve não apenas o sistema de controle da dispensação, mas uma série de outros fatores, entre os quais as atitudes dos profissionais de saúde.

Descritores: ansiolíticos; conhecimentos, atitudes e prática em saúde

ABSTRACT

The aim of this study was to understand the practice of prescription, dispensation and prolonged use of benzodiazepines, from the point of view of health care professionals and of chronic users of these substances. The sample group was formed using the snowball technique, totaling 19 key-informants. The semi-structured interviews were recorded and transcribed for analysis. Most of the interviewees reported frequent benzodiazepine prescriptions through requests made to doctors, without the need for a formal appointment. The users reported a history of prolonged use (between 2 and 8 years) for purposes other than the simple therapeutic purpose. They also emphasized the ease in acquiring the medication and the lack of medical counseling about the necessary precautions during treatment. The study suggests that the occurrence of misuse involves not only the dispensation control system, but also a series of other factors, including the attitudes of health care professionals.

Descriptores: anti-anxiety agents; health knowledge, altitudes, practice

RESUMEN

Este estudio tuvo por objetivo comprender la práctica de prescripción, dispensación y uso prolongado de benzodiazepínicos, a partir de la visión de profesionales de la salud y de usuarios crónicos de esas sustancias. La muestra fue compuesta por técnica de bola de nieve, totalizando19 informantes-clave. Las entrevistas semiestructuradas fueron grabadas y transcritas para análisis. La mayoría de los entrevistados relató ser frecuente la obtención de prescripción de benzodiazepínicos por solicitaciones ante los médicos, sin necesidad de consulta formal. Los usuarios relataron histórico de uso prolongado (entre 2 y 8 años) con otras finalidades que no apenas la terapéutica. Enfatizaron también la facilidad en adquirir la medicación y la falta de orientación médica sobre los cuidados necesarios durante el tratamiento. El estudio sugiere que el acontecimiento de uso indebido involucra no apenas al sistema de control de la dispensación, pero también una serie de otros factores, entre los cuales las aptitudes de los profesionales de la salud.

Descriptors: agentes ansiolíticos; conocimientos, actitudes y práctica en salud

INTRODUÇÃO

Os Benzodiazepínicos (BDZs) são drogas com atividade ansiolítica que começaram a ser utilizadas na década de 60. O Clordiazepóxido foi o primeiro BDZ lançado no mercado (1960), cinco anos após a descoberta de seus efeitos ansiolíticos, hipnóticos e miorrelaxantes. Além da elevada eficácia terapêutica, os BDZs apresentaram baixos riscos de intoxicação e dependência, fatores estes que propiciaram uma rápida aderência da classe médica a esses medicamentos(1-2).

Nos anos posteriores foram observados os primeiros casos de uso abusivo, além de desenvolvimento de tolerância, de síndrome de abstinência e de dependência pelos usuários crônicos de BDZs(3). Tais evidências modificaram a postura da sociedade em relação aos BDZs que, do auge do entusiasmo nos anos 70, passou à restrição do uso a partir da década seguinte(4). Nos Estados Unidos, por exemplo, o uso destes medicamentos pela população chegou a atingir 11,1% em 1979, diminuindo para 8,3%, em 1990(3).

O uso prolongado de BDZs, ultrapassando períodos de 4 a 6 semanas pode levar ao desenvolvimento de tolerância, abstinência e dependência(4-5). A possibilidade de desenvolvimento de dependência deve sempre ser considerada, principalmente na vigência de fatores de risco para a mesma, tais como uso em mulheres idosas, em poliusuários de drogas, para alívio de estresse, de doenças psiquiátricas e distúrbios do sono(4,6). Também é comum a observação de overdose de BDZs entre as tentativas de suicídio, associados ou não a outras substâncias(4).

Órgãos internacionais, como a OMS (Organização Mundial da Saúde) e o INCB (Internacional Narcotics Control Board), têm alertado sobre o uso indiscriminado e o insuficiente controle de medicamentos psicotrópicos nos países em desenvolvimento. No Brasil, esse alerta foi reforçado por estudos da décadas de 80 e 90 que mostraram uma grave realidade relacionada ao uso de benzodiazepínicos(7-8). No primeiro levantamento domiciliar nacional realizado em 2001, 3,3% dos entrevistados (entre 12 e 65 anos) afirmaram uso de benzodiazepínicos sem receita médica. Em um outro levantamento, com estudantes da rede pública de ensino de dez capitais brasileiras, 5,8% dos entrevistados afirmaram já ter feito uso de ansiolíticos sem prescrição(9).

No ano de 1999, foi realizado estudo em dois municípios brasileiros, no qual foi analisado um universo de 108.215 notificações e receitas especiais retidas em farmácias, drogarias, postos de saúde, hospitais(8). Esse estudo indicou descuido no preenchimento das notificações e receitas especiais e, inclusive, indícios de falsificações, na forma de prescrições por médicos falecidos e notificações com numeração oficial repetida. Essa realidade indica a necessidade de uma ampla revisão no atual sistema de controle dessas substâncias, bem como do papel dos profissionais de saúde nesse sistema.

Para subsidiar essa discussão são necessários estudos que busquem não apenas quantificar, mas compreender as crenças e valores que embasam as atitudes dos profissionais de saúde e dos usuários de BDZ. Dessa forma, este estudo teve como objetivo avaliar o contexto brasileiro de disponibilidade e consumo de benzodiazepínicos, a partir do ponto de vista dos usuários e dos profissionais de saúde envolvidos no sistema de prescrição e dispensação desses medicamentos.

METODOLOGIA

O presente estudo utilizou como referencial a metodologia qualitativa, a qual envolve uma amostra relativamente pequena de entrevsitados, mas com um estudo muito detalhado de cada um dos casos, permitindo a avaliação das dinâmicas atuais e do percurso histórico que as antecedeu. O informante-chave (IC), na literatura antropológica e sociológica, é uma pessoa que pertence ao grupo a ser estudado e/ou que conhece bem o assunto pesquisado, representando assim uma preciosa fonte de informações(10).

Amostra

Para este estudo, foram incluídos como ICs: médicos prescritores de BDZs, psiquiatras e psicólogos que já haviam atendido pacientes com histórico de uso prolongado de BDZs; farmacêuticos com vivência na dispensação; usuários crônicos de BDZs; profissionais envolvidos na implementação de políticas de saúde. A amostra de entrevistados foi composta no município de São Paulo, através da técnica de "bola de neve", ou seja, os primeiros entrevistados indicaram outros, e assim sucessivamente, até que foi atingido o "ponto de saturação teórico". O "ponto de saturação" é atingido quando os novos entrevistados começam a repetir os conteúdos já obtidos em entrevistas anteriores, sem acrescentar novas informações relevantes(10).

Entrevista

Com cada informante, foi realizada uma entrevista semi-estruturada, com objetivo de obter informações sobre o controle, a prática de prescrição e dispensação, bem como sobre o uso indevido, de BDZs ao longo dos últimos anos. As entrevistas ocorreram no ambulatório do Departamento de Psicobiologia ou em local sugerido pelo entrevistado, como consultório ou um restaurante. As entrevistas foram realizadas mediante a apresentação do termo de consentimento livre e esclarecido, sendo gravadas em sua totalidade.

Transcrição, codificação e análise dos dados

No processo de análise, as entrevistas foram transcritas e discutidas com a equipe de pesquisadores, para avaliação geral e determinação do tamanho da amostra ("ponto de saturação"). Posteriormente, foi feita a codificação da entrevista, ou seja, a transformação da entrevista, na sua forma literal, em um formato codificado de maneira a permitir comparações.

RESULTADOS

Caracterização da amostra pesquisada

Foram entrevistados sete médicos de diferentes especialidades (três psiquiatras, dois neurologistas, um cardiologista e um geriatra), duas psicólogas da área de dependência de drogas, quatro farmacêuticos, um Fiscal da Vigilância Sanitária e cinco usuários com histórico de uso crônico de BDZs, totalizando 19 entrevistados.

Entre usuários, foram entrevistados: um homem de 39 anos que fazia uso de BDZ com função hipnótica há cera de 10 anos, mantendo o consumo através de prescrições de diferentes amigos médicos; duas mulheres acima de 65 anos que usavam a medicação há mais de 20 anos para diminuição da ansiedade, tendo experimentado ao longo desse período vários BDZs com indicação por diferentes médicos e duas mulheres na faixa de 40 anos que vinham usando o medicamento há cerca de 2 anos, ambas com padrão intermitente de consumo, de aproximadamente 1 vez a cada 3 ou 4 dias.

Início do uso e orientação médica

O cinco usuários relataram não terem sido alertados sobre o tempo total de tratamento no início do mesmo. Além disso, três deles se queixaram da falta de orientação médica sobre os riscos da terapia com BDZ. Psicólogos e médicos também demonstraram perceber a falha na orientação médica. Além disso, os entrevistados referiram que muitas vezes a indicação inicial do remédio é feita por amigos, vizinhos e/ou familiares.

As psicólogas consideraram que muitos usuários iniciam o uso para evitar dificuldades cotidianas ou traumas pessoais como a perda de um ente querido. Esta situação foi também observada no relato de três usuários, o que é exemplificado no seguinte depoimento: Foi depois da perda da minha mãe... não tinha trabalho e. tinha que cuidar da minha irmã. Eu estava endividado. Eu estava meio que num beco sem said. Ficava olhando pra parede, pensando em bobagem. Eu preferia tomar o remédio e dormir (usuário, 33 anos).

Função e progressão do uso

Os usuários apontaram duas principais funções para o seu uso de BDZs: o tratamento dos distúrbios do sono e o tratamento dos transtornos da ansiedade, como exemplificado nos trechos a seguir: O remédio me fazia dormir e me acalmava. Então eu tomava sempre (usuária, 42anos) e É como um negócio que te desliga. Um botão que desliga como televisão, ar condicionado, seja lá o que for... que ajuda muito mediante tantas tensões (usuário, 33 anos).

Os médicos descreveram dois perfis predominantes de usuários. Um deles composto por idosos que buscam o efeito hipnótico da medicação, e o outro composto predominantemente por mulheres de meia idade que buscam efeito ansiolítico. Para esse segundo grupo, alguns médicos se referiram à medicação como uma "muleta", ou como algo que "dá a falsa impressão de estar resolvendo o problema". Uma usuária entrevistada afirmou tomar a medicação profilaticamente a fim de evitar a ansiedade provocada por situações de stress: Ele me tranqüiliza... se vai acontecer alguma coisa eu já estou tranqüila (usuária, 67anos).

O fenômeno da tolerância e/ou aumento progressivo da dose foi mencionado por vários entrevistados, profissionais e usuários. Além disso, também foi mencionada a substituição entre os BDZs (Diazepamâ por Loraxâ, por exemplo) por todos os usuários, como no caso desta: Antes do Diazepan, tomei Lorax... é eu tomei o Lorax e o Dormonid (usuária, 67anos).

Em relação ao desenvolvimento de dependência, os médicos de um modo geral consideraram-se aptos a identificar um dependente, embora muito menos freqüentemente tenham relatado êxito no tratamento dessa dependência. Entre os usuários, apenas um se autodenominou dependente de BDZ, sendo que a grande maioria referiu que o uso da medicação era benéfico e estava sob controle: Nenhum problema... Com o Diazepam eu nunca tive nada (usuária, 68 anos). Porém, uma usuária se referiu do seguinte modo à única tentativa que teve de suspensão do remédio: É ruim, eu não consigo dormir, fico andando na casa e saio pra fora... é perigoso eu abrir o portão e me enfiar debaixo de um carro (usuária, 68 anos).

Disponibilidade e aceitabilidade

Um fator que parece favorecer a popularidade dos BDZs é o preço, conforme a afirmação de uma das usuárias entrevistadas: Não tem nada mais barato (usuária, 68 anos). Os profissionais confirmam essa idéia de que o baixo custo seria um dos fatores que propiciaria a banalização do uso desses medicamentos.

Entre os entrevistados, especialmente entre médicos, prevalece a idéia de que os pacientes aceitam melhor a prescrição de um BDZ comparada à prescrição dos demais psicotrópicos, o que é ilustrado no depoimento: O antidepressivo é remédio pra louco, o benzodiazepínico não, não é engraçado? (neurologista, 34 anos). Verificou-se também a boa aceitação dos BDZs através da imagem positiva conferida ao medicamento pelos usuários crônicos, que enfatizaram seus efeitos positivos: relaxa, acalma, proporciona sono restaurador, induz o sono rapidamente.

Todos os usuáriios, quando inquiridos sobre efeitos colaterais, negaram qualquer efeito, mesmo quando investigados pontualmente os principais efeitos colaterais: Não, o remédio não fazia eu esquecer de nada (usuária, 68 anos). Os profissionais relataram que os pacientes não têm crítica sobre os malefícios do uso prolongado procurando mantê-lo a todo custo: Uso crônico, percepção igual a zero (neurologista, 49). Segundo estes profissionais, mesmo que ocorra esta percepção da dependência, os pacientes não se mostraram preocupados: o Diazepam de manhã está me fazendo muito bem (usuária, 67anos).

Os BDZs apontados como os mais usados foram Diazepamâ, Loraxâ e Lexotanâ. Três dos sete médicos atribuíram à disponibilidade do Diazepamâ nos Postos públicos de saúde a sua enorme popularidade, conforme o trecho do depoimento de uma neurologista: Mais comum pelo poder aquisitivo, pela facilidade é o Diazepamâ. Os postos, o estado, a prefeitura fornece, então ele até é mal usado, porque em termos de indicação, ele seria de menor escolha pra gente (neurologista, 34 anos).

Estratégias de aquisição

O uso de artifícios tais como simulação, bajulação, sedução e ameaças do tipo: "se eu não tomar o remédio vou ter um infarto" foram referidas por três dos sete médicos entrevistados como estratégias de aquisição da prescrição. A principal estratégia, enfatizadas pela maioria dos entrevistados, foi a aquisição de receita junto a médicos amigos ou familiares, além de solicitação de receita a médicos diferentes (alternadamente), como ilustra o seguinte relato: ... normalmente é assim, um parente que é médico, uma colega que é médica, então elas vão tentando obter a medicação até conseguir... enfim, elas obtêm a medicação... Então existe toda uma negociação mesmo, um vínculo que elas vão estabelecendo com os diferentes tipos de médicos (psicóloga, 52 anos).

Os profissionais acreditavam que a freqüente procura de receita pelos usuários levava-os a um crescente refinamento das queixas e da simulação de doenças. Assim, o cardiologista entrevistado mencionou casos de pacientes que procuram os médicos apresentando queixas típicas de alteração cardiovascular como dispnéia, precordialgia e ansiedade: No pronto socorro de cardiologia até que são relativamente freqüentes esses doentes, eles vêm dizendo que tão com falta de ar, que tão com dor no peito, que tão muito nervosos e que se não tomarem o remédio não vão melhorar, são muito dependentes do medicamento (cardiologista, 54 anos).

Todos os farmacêuticos relataram, com base na sua experiência em dispensação, a constante solicitação de medicação sem receita apropriada. No entanto, a maioria dos usuários afirmou que, embora essa prática fosse possível, eles não compravam medicação sem receita, nem a obtinham em mercado clandestino. ... eu imagino que assim como você compra um atestado médico, você consiga uma receita. Eu nunca tentei fazer isso, mas eu não vejo porque essas pessoas que vendem atestado, não venderiam uma receita? E um papelzinho impresso azul tem gente que ta lá pra exercer a prática de medicina e tem gente que ta lá pra ganhar uns trocados... (usuário, 33 anos).

Formação dos profissionais

Os profissionais entrevistados foram unânimes em constatar que a preparação adquirida ao longo da graduação em medicina é falha no que diz respeito à prescrição de BDZs. Essa desinformação resultaria tanto em subprescrição, pelo temor em relação aos efeitos da medicação quanto em superprescrição pelo desconhecimento dos riscos que acompanham o uso do remédio. Um médico estende esta crítica à prescrição dos demais psicotrópicos: Os médicos têm um preparo muito ruim para prescrever, qualquer droga psicotrópica, não é só benzodiazepínico (psiquiatra, 52 anos). Uma neurologista apontou, com indignação, a falta de acompanhamento no tratamento pelo prescritor inicial como falha fundamental: Então se você teve segurança pra começar a prescrever, partia do pressuposto que você sabia o que tava dando pro paciente, né? Mas não, manda pro colega resolver quando o paciente se torna dependente , é engraçado, né? (neurologista, 35 anos).

Sistema de controle

Irregularidades de prescrição e dispensação foram mencionadas por todos os profissionais entrevistados, principalmente pelos farmacêuticos, mas os usuários negaram qualquer estratégia nesse sentido. De uma maneira geral, os profissionais concordam que é importante controlar a dispensação dos BDZs, até porque, além do risco de dependência associado ao uso crônico da medicação, há o risco de intoxicação letal pelo medicamento. No entanto, a maioria deles acha que entre os principais problemas estão: 1) a má indicação clínica; 2) a desinformação do médico e 3) a falta de conscientização tanto da parte do médico quanto do farmacêutico.

Alguns médicos afirmaram que o controle vem se intensificando ultimamente e que, apesar de não ser ideal, é o melhor possível. Por outro lado, as opiniões dos farmacêuticos foram mais contundentes contra o sistema de controle atual, considerado ruim por todos eles. Entre outras impressões, apontaram o excesso de burocracia que dificulta o trabalho do médico sem melhorar a fiscalização, a complexidade das normas impostas pela legislação brasileira atual e a falta de consensos orientando a indicação clínica do medicamento.

Os profissionais sugeriram as mais variadas possibilidades de intervenção no atual sistema de controle a fim de aperfeiçoá-lo, apresentando propostas que abordam desde a prevenção primária até a redução de danos. Foi sugerida a instituição de um sistema eletrônico, capacitação dos balconistas, a orientação dos médicos, a substituição do BDZ por outra droga como o Zolpidem ou ainda por terapia cognitivo-comportamental, entre outros.

DISCUSSÃO

Este estudo confirma a ocorrência de uso indevido de BDZs no Brasil. Foram dois os perfis principais de usuários crônicos de BDZs descritos: um deles composto por idosos, que buscam principalmente o efeito hipnótico da medicação, e o outro composto por indivíduos de meia idade, predominantemente do sexo feminino, que buscam o efeito ansiolítico. Essas categorias também são apresentadas em estudos internacionais(2,11-14).

As falhas no processo de dispensação dos BDZs, apontadas pelos entrevistados neste estudo, são confirmadas por outras pesquisas Nacionais(8). Porém, os usuários entrevistados negaram a utilização de estratégias ilegais de obtenção da medicação nas drogarias. Embora o grupo de usuários precisasse ser ampliado para verificar tais conclusões, este dado sugere que o usuário indevido seja, na verdade um paciente desinformado, que mantém o uso crônico do BDZ legitimado pela falta de preparo do médico.

No que diz respeito à classe médica, o presente estudo confirma a prescrição médica como fator de grande importância na manutenção do uso crônico de BDZs. Segundo a visão dos clínicos e a vivência dos usuários entrevistados, observou-se que, com muita freqüência, os pacientes pedem a prescrição a médicos conhecidos. Estes médicos normalmente são amigos, vizinhos, familiares, colegas de trabalho do usuário. Esses resultados sugerem atitude médica indevida, ao dispensar a relação médico-paciente para a prescrição de BDZs. A prescrição médica indiscriminada também tem sido observada em outros países. Em um estudo domiciliar realizado na China, envolvendo 3.000 famílias, foram encontrados 107 dependentes de BDZs, dos quais 91,6% adquiriam medicação através de prescrição médica(11). Outro estudo, sobre as características sociodemográficas de usuárias crônicas de BDZs em Valência, na Espanha, o clínico geral foi prescritor regular de BDZs em até 100% dos casos(12).

Esta pesquisa também indica a carência de informação por parte dos usuários a respeito dos efeitos adversos ocasionados pelos BDZs. Estudos realizados em outros países também sugerem a relevância desta questão. Em uma pesquisa conduzida na Áustria, em que foram entrevistados pacientes internados que faziam uso de BDZs, apenas 2% consideraram suficientes as informações providas pelo prescritor, enquanto 66% negaram ter recebido qualquer informação(15). A falta de esclarecimento parece facilitar a cronificação do uso, à medida que o usuário não avaliaria os riscos aos quais se submete. No Brasil, a baixa percepção de risco pela população também tem suas raízes na carência de debate social sobre a questão nos meios de comunicação, que privilegiam apenas o cenário das drogas ilícitas como problema.

Além disso, entre os psicotrópicos, os benzodiazepínicos figuram como medicamentos com razoável margem de segurança e inegável eficácia, o que justifica sua popularidade junto aos médicos e à população leiga(2). Apesar da segurança oferecida pelos BDZs, observa-se na literatura a recomendação preferencial de outras intervenções que não a prescrição de BDZs para o tratamento ou alívio sintomático de estado ansiosos e de insônia. São recomendados agentes farmacológicos não pertencentes à classe dos BDZs, bem como intervenções psicoterápicas ou a combinação de ambos(6). O uso de drogas como o Zolpidem e o Zaleplon para o tratamento da insônia com vantagem sobre o uso de BDZs, vem sendo cada vez melhor documentado(13,15), bem como o uso do Cloridrato de Buspirona para o tratamento dos Transtornos de Ansiedade Generalizada.

Essa realidade não vem dispondo de qualquer respaldo junto às políticas de promoção de saúde. Isso aponta para a necessidade de melhores formação e atualização dos profissionais, assim como de informação dos usuários, medidas de prevenção primária, que poderiam resultar em grande impacto social a um baixo custo. Neste cenário, não apenas a classe médica, mas os profissionais de saúde em geral como enfermeiros, psicólogos, agentes comunitários e farmacêuticos, poderiam ser alvo de tais medidas, já que está em posição privilegiada para alertar sobre os riscos e monitorar o uso destes medicamentos junto à população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O uso indevido de BDZ parece envolver, além dos usuários, os médicos que prescrevem a medicação e os farmacêuticos que a dispensam. A falta de informação e a baixa percepção das conseqüências deletérias do uso indevido de BDZ, por estes três personagens (médico, farmacêutico e usuário), somada a uma série de outras questões discutidas neste estudo, parecem ser alguns dos principais fatores que favorecem esse fenômeno. As falhas no sistema de controle, apesar de ocorrerem, não parecem ser os principais fatores. Dessa forma, intervenções no sentido não apenas controlar, mas de informar médicos, farmacêuticos, enfermeiros e pacientes, parecem ser as formas de atuação mais promissoras frente a essa realidade.

AGRADECIMENTOS

As autoras agradecem a todos os entrevistados por suas importantes contribuições e a FAPESP (Fundação de Ampara a Pesquisa) pela bolsa de iniciação científica concedida durante a realização deste estudo.

Recebido em: 23.8.2005

Aprovado em: 30.9.2005

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Out 2005

Histórico

  • Aceito
    30 Set 2005
  • Recebido
    23 Ago 2005
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