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Estruturas de governança e empreendedorismo coletivo: o caso dos doutores da alegria

Resumos

Este artigo pertence ao campo dos estudos sobre governança, em especial em organizações sem fins lucrativos. O conceito de governança é abordado em múltiplas áreas do conhecimento e segundo várias perspectivas teóricas. A forte influência da teoria da agência confere-lhe comumente o sentido de práticas de controle para maior eficiência e transparência na gestão organizacional. Há, entretanto, perspectivas teóricas alternativas, tais como a economia social, que considera a governança como uma categoria analítica associada a conceitos como participação, parceria, aprendizagem coletiva, regulação e favorecimento de estruturas organizacionais descentralizadas e democráticas. Para compor uma estrutura de governança com tais características, pode-se aprender bastante com o conceito de empreendedor coletivo (Malo, 2000), que oferece contribuição para o desenvolvimento de estruturas participativas e democráticas, como pudemos concluir com o estudo do caso Doutores da Alegria. A análise de tal caso oferece proposições decorrentes da comparação entre as perspectivas teóricas e o emprego do conceito de empreendedor coletivo. Os resultados são uma contribuição para o esclarecimento, evolução e crítica do conceito de governança.

governança; organizações sem fins lucrativos; empreendedor coletivo; poder compartilhado


This article relates to the field of studies in governance, particularly as applied to non-profit organizations. It addresses the governance concept in multi-knowledge areas and under various theoretical perspectives. In general, the strong influence of the agency theory imparts to the term the meaning of control practices towards a higher organizational efficiency. It contains, however, alternative approaches that consider governance as an analytical category associated with concepts such as participation, alliance, collective learning, regulation of and facilitation to decentralized and democratic organization structures. Governance structures are organizational identity building mechanisms. In this connection, the collective entrepreneur concept offers an important contribution to the development of a participating and democratic structure (Malo, 2000), as one could conclude from the Doutores da Alegria case study. The discussion provides propositions stemming from the comparison between theoretical sources and an in-depth study of the alternative approach. The results conduce toward the explanation, evolution and criticism of the concept.

governance; non profit organizations; collective entrepreneurship; shared power


ARTIGOS

Estruturas de governança e empreendedorismo coletivo: o caso dos doutores da alegria

Andréa Leite Rodrigues; Marie Claire Malo

RESUMO

Este artigo pertence ao campo dos estudos sobre governança, em especial em organizações sem fins lucrativos. O conceito de governança é abordado em múltiplas áreas do conhecimento e segundo várias perspectivas teóricas. A forte influência da teoria da agência confere-lhe comumente o sentido de práticas de controle para maior eficiência e transparência na gestão organizacional. Há, entretanto, perspectivas teóricas alternativas, tais como a economia social, que considera a governança como uma categoria analítica associada a conceitos como participação, parceria, aprendizagem coletiva, regulação e favorecimento de estruturas organizacionais descentralizadas e democráticas. Para compor uma estrutura de governança com tais características, pode-se aprender bastante com o conceito de empreendedor coletivo (Malo, 2000), que oferece contribuição para o desenvolvimento de estruturas participativas e democráticas, como pudemos concluir com o estudo do caso Doutores da Alegria. A análise de tal caso oferece proposições decorrentes da comparação entre as perspectivas teóricas e o emprego do conceito de empreendedor coletivo. Os resultados são uma contribuição para o esclarecimento, evolução e crítica do conceito de governança.

Palavras-chave: governança; organizações sem fins lucrativos; empreendedor coletivo; poder compartilhado.

ABSTRACT

This article relates to the field of studies in governance, particularly as applied to non-profit organizations. It addresses the governance concept in multi-knowledge areas and under various theoretical perspectives. In general, the strong influence of the agency theory imparts to the term the meaning of control practices towards a higher organizational efficiency. It contains, however, alternative approaches that consider governance as an analytical category associated with concepts such as participation, alliance, collective learning, regulation of and facilitation to decentralized and democratic organization structures. Governance structures are organizational identity building mechanisms. In this connection, the collective entrepreneur concept offers an important contribution to the development of a participating and democratic structure (Malo, 2000), as one could conclude from the Doutores da Alegria case study. The discussion provides propositions stemming from the comparison between theoretical sources and an in-depth study of the alternative approach. The results conduce toward the explanation, evolution and criticism of the concept.

Key words: governance; non profit organizations; collective entrepreneurship; shared power.

Introdução

Nas últimas duas décadas, a governança das organizações passou a ser um tema de interesse para estudiosos de diversas áreas. Desde meados da década de 1980, o termo governança tornou-se importante dentre uma grande variedade de disciplinas, incluindo direito, políticas públicas e, sobretudo, gestão de organizações privadas, públicas ou sem fins lucrativos. No entanto, a disseminação do uso do termo não resultou em esclarecimento sobre seu significado. Kooiman (1999), ao realizar revisão bibliográfica sobre governança, afirmou ser este um conceito utilizado em variedade tão grande de significados que se tornou necessário estabelecer dimensões de análise antes de retirar dele qualquer contribuição.

Este trabalho tem por objetivo investigar a contribuição que o conceito de governança pode fornecer à gestão de organizações sem fins lucrativos. As questões de pesquisa versaram sobre os significados do conceito de governança e as respectivas implicações, em termos de práticas de gestão organizacional; quais os significados que podem ser encontrados na literatura para o termo governança? A que temas ele está relacionado? A quem cabe a governança nas organizações, com ou sem fins de lucro? Quais as implicações ou relações entre governança e gestão? Quais as perspectivas teóricas mais significativas?

Além da revisão teórica, este artigo contém um estudo de caso, oferecendo, portanto, a contribuição de um estudo empírico sobre o conceito de governança. Realizamos a análise de um episódio na trajetória de uma organização brasileira sem fins lucrativos, os Doutores da Alegria. Trata-se de uma organização de artistas profissionais (entenda-se assalariados em bases mensais) de teatro clown, que atuam em hospitais pediátricos em São Paulo e Rio de Janeiro. Efetivamente, em 1998, a associação Doutores da Alegria foi reconhecida pela ONU Divisão Habitat, como uma das cem maiores práticas globais pelo bem estar do planeta. Mesmo passando por um período de intenso reconhecimento externo, a associação enfrentou uma crise interna provocada por diferenças entre artistas e não artistas. Este fato levou à rediscussão dos processos decisórios estratégicos e revisão da estrutura de governança. A análise deste episódio nos permitiu desenvolver algumas proposições para a compreensão do conceito de governança em organizações sem fins lucrativos.

Este artigo é constituído pelas seguintes partes: na primeira, encontra-se a revisão da literatura e a reunião de todas as teorias ou perspectivas teóricas que abordam o conceito de governança. Na segunda, vamos expor com mais detalhes o trabalho de autores da economia social nos quais o termo governança aparece associado aos conceitos de empreendedor (Vienney, 1994) e de empreendedor coletivo (Malo, 2000a, 2001). Tal perspectiva teórica assumiu destaque neste estudo, pois se trata de visão da governança distinta de outras, nas quais o conceito tem o significado de ações do conselho de administração de uma organização para mediar conflitos de interesses. Na terceira parte, esclarecemos aspectos metodológicos que foram estipulados para o estudo de caso, o qual está baseado em narrativa pessoal, método qualitativo estudado por autores como Ellis e Bochner (2000), Mitroff e Killman (1981) e Riessman (1993). Na seqüência, apresentamos o estudo do caso dos Doutores da Alegria, elaborado à luz dos conceitos oriundos da perspectiva teórica desenvolvida por autores da economia social, valendo-nos do conceito de empreendedor coletivo tal qual proposto por Malo (2001). Na quinta parte, procedemos à análise do caso e apresentamos três proposições para o desenvolvimento de estruturas de governança em organizações sem fins lucrativos. Finalmente, na conclusão, retomamos as questões de partida deste estudo e as discutimos, a partir do aprendizado teórico e empírico que desenvolvemos.

Governança: Perspectivas Teóricas e Paradoxos

Governança é conceito extensivamente usado, mas que ainda carece de trabalhos teóricos e empíricos para desenvolvimento, evolução e crítica. Cornforth (2003) afirma que a governança em organizações sem fins lucrativos tem ainda menos trabalhos de teorização que a governança em organizações de negócios, o que torna pertinente, portanto, estabelecer estudos para a continuidade da compreensão do conceito neste campo organizacional.

Ao proceder à revisão preliminar da literatura, classificamos os trabalhos em dois grandes grupos, a partir do significado dado ao termo governança. No primeiro, classificamos trabalhos em que o termo aparece como sinônimo de práticas de controle, e nos quais se dá ênfase à análise de papéis cabidos ao conselho de administração, diretores, além outros envolvidos no processo decisório (Duca, 1996; Houle, 1989; Ingram, 1988; Malefant, 1999; Middleton, 1987). No segundo grupo, classificamos o que entendemos por visões alternativas, que ampliam a compreensão do termo governança. Sem rejeitar a noção de controle, estas outras teorias dão maior atenção à governança como modo do exercício do poder. Mais especificamente, assumem a governança como um conceito afeito ao exercício do poder em decisões tanto no nível organizacional (Malo & Vezina, 2003; Malo, 2001, 2000b; Saidel, 1998), como no nível institucional (Fisher, 2002; World Bank, 1992). Governança aparece como poder partilhado ou ação coletiva gerenciada, sendo particularmente pertinente para tratar organizações de natureza cooperativa, democrática e associativa. O termo torna-se uma categoria analítica, associada a conceitos como participação, parceria, aprendizagem coletiva, regulação e práticas de bom governo, tal como orçamento participativo e ações de desenvolvimento local e regional. Criar estruturas de governança significa definir uma dinâmica de incentivo à participação e engajamento dos atores sociais de uma organização no processo decisório estratégico, valorizando estruturas descentralizadas (Guimarães & Martin, 2001).

Após tal revisão preliminar e separação do material nestes dois grupos, recebemos a brilhante contribuição que o livro de Chris Cornforth, The Governance of Public and Non-Profit Organizations, possibilita. Este autor coloca que as perspectivas teóricas que tratam do conceito de governança vêm de seis diferentes vertentes: a teoria da agência (the agency theory), a teoria da parceria (the stewardship theory), a teoria da dependência de recursos, a perspectiva democrática, a teoria dos parceiros (stakeholders) e a teoria da hegemonia gerencial. O Quadro 1 elucida brevemente o conteúdo de cada uma das seis perspectivas teóricas conforme apresentado por Cornforth (2003, p. 7-11).


Após analisarmos as características das seis vertentes teóricas apresentadas por Cornforth, chegamos a três conclusões, quanto às perspectivas teóricas que oferecem explicações para o significado do termo governança:

1. As seis perspectivas teóricas dão especial atenção à compreensão do papel do conselho de administração, suas responsabilidades e natureza de sua intervenção na organização, sendo que o termo empregado é governança corporativa.

2. Tomada individualmente, cada perspectiva teórica oferece uma visão unidimensional do conceito de governança, o que leva a uma contribuição restrita, bem como uma compreensão estreita que poderia ser desenvolvida em uma abordagem multiparadigmática.

3. Em nenhuma das seis encontramos o significado que identificamos nos autores do segundo grupo da revisão teórica inicial. Há, evidentemente, elementos análogos. Entretanto, em todas elas o papel do conselho de administração e a gestão dos conflitos entre administradores e acionistas (ou proprietários) aparece como sendo a idéia principal associada ao conceito de governança. Nos autores classificados inicialmente no segundo grupo, o papel do conselho de administração não é negligenciado, porém não é o ponto a realçar. A atenção está mais voltada para o exercício coletivo do poder e o desenvolvimento de processos estratégicos participativos e solidários.

A revisão da literatura nos mostrou, portanto, que o conceito de governança possui múltiplas interpretações, traduzidas por diferentes perspectivas teóricas. Entretanto, ocorre um predomínio de perspectivas teóricas cuja proposta é, sobretudo, discutir e propor políticas para o trabalho do conselho de administração, admitindo que governança é conceito que emerge da existência de conflito entre administração e propriedade, idéia oriunda da teoria da agência (principal - agency theory). A premissa central desta teoria é que administradores, como agentes dos acionistas (ou principals), podem envolver-se em decisões ou comportamentos que estejam em conflito, ou sejam inconsistentes, com o objetivo de maximizar o retorno para os acionistas. A influência da teoria da agência em estudos sobre governança corporativa faz com que se encontrem trabalhos que versam, principalmente, sobre as seguintes questões:

. composição e papel do conselho de administração (Lorsch & Maciver, 1989; Mace, 1971);

. políticas de remuneração de presidentes e de altos executivos (Daily, Johnson, Ellstrand, & Dalton, 1998; Keasey & Wright, 1997);

. estrutura de propriedade (ou de capital) nas empresas (Jensen & Meckling, 1976).

Tal influência da teoria da agência não acontece por acaso e remonta a razões históricas, porém recentes, envolvendo escândalos de má gestão em grandes empresas multinacionais. Em 1992, foi publicado no Reino Unido o relatório do Cadbury Commitee sobre as causas de vários eventos relacionados à gestão oportunista de empresas. A partir de então, o termo governança corporativa (corporate governance, no original) ficou mais evidente e de uso freqüente para discriminar práticas de gestão fraudulentas e envolvendo má conduta de administradores, em função de conflitos de interesses entre estes e os acionistas ou proprietários das empresas. Conseqüentemente, governança corporativa surgiu como termo para definir um sistema de ações no nível organizacional que garantisse a direção, controle e transparência das ações dos administradores, em face dos interesses dos acionistas ou proprietários. Definir estruturas de governança envolveria, conseqüentemente, estabelecer práticas de relacionamentos entre acionistas, conselho de administração, conselho fiscal, diretoria e auditoria, abrangendo os assuntos relativos ao poder de controle e direção de uma empresa, bem como as diferentes formas e esferas de seu exercício e os diversos interesses que, de alguma forma, estão ligados à vida das sociedades comerciais.

Mesmo tendo origem nas sociedades comerciais, as idéias propostas pela teoria da agência também passaram a influenciar bastante o tratamento da governança em organizações sem fins lucrativos. Não há, neste caso, a figura do acionista, mas permanece a necessidade de garantir que gestores estejam agindo de acordo com a missão da organização, e não em função de seus próprios interesses (Duca, 1996; Houle, 1989; Ingram, 1988; Malenfant, 1999, Middleton, 1987).

Conforme se menciona na Introdução, encontramos em trabalhos de autores ligados à economia social interpretação alternativa para o conceito de governança, fugindo à simples discussão sobre os conflitos entre gestão e propriedade, dando maior atenção à discussão sobre as formas de exercício do poder nas organizações. Esta é, portanto, uma perspectiva teórica destacável em estudos sobre governança em geral e em organizações sem fins lucrativos em particular, ainda que apresente elementos análogos a outras perspectivas apresentadas por Cornforth (2003), como a perspectiva democrática ou mesmo a teoria dos stakeholders. Economia social é o termo utilizado por autores francofônicos para designar o setor produtivo sem fins lucrativos na França (Vienney, 1994) e no Québec, Canadá (Malo & Lévesque, 1992; Malo & Vezina, 2003); engloba organizações comerciais na forma de fundos mútuos, cooperativas e associações, onde se encontram processos produtivos baseados em formas associativas de produção e comercialização de bens ou serviços.

Dada a singularidade dessa perspectiva teórica no que concerne ao significado dado ao termo governança, resolvemos estabelecê-la como a base teórica para análise do estudo de caso que completa este artigo. Na seção a seguir, aprofundaremos a apresentação sobre economia social e, na seqüência, passamos ao estudo de caso, análise e crítica das experiências teórica e empírica.

Governança: Indo Além do Papel do Conselho de Administração

Para melhor compreender a estrutura de governança de uma organização da economia social, Vienney (1994) emprega o conceito de empreendedor e Malo (2000a, 2001), o de empreendedor coletivo. Em Malo e Vezina (2003), Malo (2000a, 2000b, 2001) e Vienney (1994) encontramos mais detalhes sobre tais conceitos. O empreendedor coletivo encabeça o processo estratégico nas organizações da economia social, ou seja, em cooperativas, associações e organizações comerciais na forma de fundos mútuos. Isto significa que o processo é conduzido não por um só indivíduo, mas por um conjunto de atores dispostos estatutariamente, em função da lei e das regras internas, e que se organizam, geralmente, da seguinte maneira.

Assembléia Geral: Constituída por todos os membros da cooperativa, sendo que todos têm direitos a voto e elegem por voto direto os membros do conselho de administração.

Conselho de Administração: tem a mais alta autoridade nas questões estratégicas e indica os membros da diretoria.

Diretoria: responde pelos seus atos ao conselho de administração; pode ser destituída, caso assim seja votado na assembléia geral ou no conselho de administração.

Para Malo (2001), esta estrutura de governança permitiria às cooperativas endereçar duas questões que se manifestam como tensões no ideal cooperativo.

1. Alcançar uma orientação estratégica que trate o duplo caráter das organizações da economia social: por um lado, uma cooperativa é um agrupamento de pessoas movidas por um objetivo comum que se traduz em uma atividade socioeconômica; por outro, uma cooperativa é também uma empresa, inserida na economia de mercado, que necessita encontrar neste um posicionamento competitivo.

2. Promover o engajamento dos membros nos processos decisórios estratégicos, uma vez que eles são, ao mesmo tempo, co-responsáveis pela administração e co-proprietários da empresa.

Para enfatizar o caráter participativo deste desenho de processo decisório, Malo (2001) utiliza duas imagens. Na primeira, usando a imagem de um triângulo, estaria disposto o processo estratégico como tratado nos modelos clássicos, visando ao posicionamento da empresa no mercado. O triângulo relaciona os três componentes fundamentais de um processo estratégico: o empreendedor, a empresa e o meio-ambiente. Na segunda imagem, tem-se uma ampulheta e não um triângulo, pois o ângulo cabido ao empreendedor se transformaria em outro triângulo, formado pela assembléia geral, conselho de administração e diretoria. As três instâncias juntas comporiam o empreendedor coletivo. O Quadro 2 oferece um esquema para visualização das imagens da estrutura de governança, conforme proposto por Malo (2001).


Observamos que no modelo estratégico revisto, os administradores da diretoria são o elo central entre as estruturas de gestão e de governança. A diretoria se torna, portanto, um agente que tem o poder de conduzir ações dentro da estrutura de gestão da organização, mas que deve, igualmente, submeter-se à aprovação das instâncias constituídas pelos membros da cooperativa, seja via representação indireta, como no conselho de administração, seja via direta de atuação, por meio da assembléia geral.

Para Vienney (1994) e Malo (2000a, 2000b), o empreendedor é o agente que detém o poder sobre a combinação dos recursos produtivos dos quais dispõe a empresa; o empreendedor coletivo é o conjunto de atores que participam dos processos de formação das orientações estratégicas da organização com orientação e propriedade coletiva. Ao propor a estrutura de governança e o conceito de empreendedor coletivo, Malo (2001) enfatiza que o processo decisório se desenvolve na medida em que os atores em cada instância agem pautados por um conjunto de princípios pertinentes a um empreendimento de natureza cooperativa e coletiva. A estrutura de governança tem de ser animada pela visão do projeto associativo, bem como pela missão da organização e pelos valores dos membros da cooperativa.

O conceito de empreendedor coletivo baseia-se, portanto, em uma configuração de instâncias múltiplas e inter-relacionadas de autoridade, dispostas de forma que todos os membros participem da gestão estratégica da cooperativa, animados pelos princípios que os uniram. A relevância de tal conceito reside em cuidar de que todos os membros estejam envolvidos e não negligenciem os princípios da organização de natureza cooperativa, dada a eterna tensão entre mobilizar membros para um objetivo comum e inserir-se em uma economia de mercado, com intensa competição.

Conquanto este modelo tenha sido desenvolvido para tratar de organizações da economia social, a idéia de desenvolver estruturas de governança participativas e democráticas é um desafio presente em outras organizações do setor sem fins lucrativos. Assim, propomos uma apreensão do conceito de empreendedor coletivo para outros perfis organizacionais que, em comum, enfatizem uma natureza participativa dos processos de decisão e demandem uma estrutura de governança que contemple os desafios da propriedade coletiva.

Aspectos Metodológicos Relevantes

Em aliança à pesquisa teórico-conceitual em busca de perspectivas teóricas que tratem do conceito de governança, este artigo também quer oferecer uma contribuição de estudo empírico por meio de narrativa de experiência pessoal que envolve problemas de governança em uma organização sem fins lucrativos.

A opção por investigação por meio de narrativa pessoal encerra muitos obstáculos em termos de contribuição ao conhecimento científico, de que salientamos dois. Em primeiro lugar, não se podem negligenciar as limitações próprias do fato de que o material coletado, interpretado e exposto, advém da visão e apreensão da realidade por apenas um ator social. Em segundo, dificuldade sempre presente pelos que optam por métodos de pesquisa qualitativos, é a impossibilidade de realizar generalizações, pois o estudo se baseia em interpretar uma situação vivida, ou seja, construir sentido a partir da própria experiência do pesquisador.

Mesmo com tais limitações, a narrativa pessoal pareceu ser a estratégia de pesquisa mais acertada para este estudo, dada a singularidade de envolver a participação da autora na administração de uma organização sem fins lucrativos peculiar dentro do contexto brasileiro e nela ter participado do processo de desenvolvimento de nova estrutura de governança. Tal qual colocado por Patton (2002, p. 84), a autora quis investigar como sua própria experiência com conflitos de governança em uma organização sem fins lucrativos poderia oferecer contribuições para outros estudos ou situações semelhantes.

Além de Patton, outros autores trataram da importância da narrativa pessoal como estratégia de pesquisa. Mitroff e Killman (1981, p. 49) realizaram estudo em que desenvolveram uma tipologia de estilos pessoais de trabalho científico. Nele, enfatizaram a importância de cientistas cuja forma de produzir conhecimento está baseada em experiências pessoais e passionais, denominando-as humanismo conceitual e humanismo específico (no original, conceptual humanist e particular humanist). Tais estilos de trabalho baseiam-se em sentimentos e percepções do próprio pesquisador, envolvendo a intenção de promover o desenvolvimento humano na maior escala possível ou de responder a uma questão que ele coloca a si próprio. Complementando, Riessman (1993, p. 4) afirma que narrativas pessoais estão entre as formas clássicas de métodos de pesquisa qualitativa e derivam da autoetnografia, estratégia de pesquisa em que alguém estuda a cultura em que se insere, sendo ao mesmo tempo sujeito da produção do conhecimento e objeto de observação, influenciado pela mesma cultura que deseja desvendar.

Uma vez que a autora permaneceu o biênio 1999-2000 como diretora executiva da associação Doutores da Alegria, e nela vivenciou problemas relacionados a formatos de processos decisórios e estruturas de governança, julgou-se procedente a adoção da narrativa pessoal como estratégia de pesquisa adequada para realizar este estudo. Cabe enfatizar que Doutores da Alegria é uma entidade que reúne características singulares no cenário brasileiro, como auto-sustentabilidade, independência total do Estado ou de agente privado específico, sistema de remuneração em bases mensais de todo o quadro de colaboradores e iniciativa inovadora de prestação de serviço artístico em ambientes hospitalares. Pode-se, portanto, considerar que este é um caso relevante e destacável, cujo estudo pode gerar conhecimento para outras organizações em que se apresentem polêmicas em torno de estruturas de governança.

Doutores da Alegria: um Olhar nos Bastidores

Doutores da Alegria é uma organização brasileira sem fins lucrativos, criada em 1991, composta por artistas com formação em teatro clown, uma das técnicas do teatro cômico, que trabalha com o arquétipo do palhaço e o domínio de artes circenses. No momento atual, a entidade desenvolve o trabalho artístico em oito hospitais pediátricos em São Paulo e dois no Rio de Janeiro.

Em meados de 1999, vinte e cinco atores e dez profissionais na administração constituíam a organização. Todos os colaboradores sempre foram remunerados em bases mensais, desde o começo das atividades. A organização se mantém por captação de recursos de empresas através de patrocínio empresarial e contribuições regulares de sócios mantenedores.

Conflitos na equipe, principalmente na administração, começaram a ser freqüentes, impulsionados pelo crescimento da organização. As queixas repousavam nos seguintes pontos:

Os dez profissionais que trabalhavam na administração não eram artistas e cuidavam de todas as questões relativas à captação e gerenciamento de recursos financeiros, comunicação, prestação e contas, atendimento e demais funções decorrentes do trabalho nos hospitais. A maior institucionalização levava ao aumento tanto da quantidade de trabalho quanto da complexidade e dos riscos de cada decisão. Nenhuma atividade de treinamento ou desenvolvimento profissional havia sido planejada para a equipe de gestores. Ao contrário, a equipe de artistas sempre recebeu treinamento constante e variado.

Desde sua fundação, a equipe contava com profissionais remunerados, mas a natureza incerta dos recursos nunca, até então, permitira nenhuma política ou critério de remuneração planejado. Notadamente, todas as iniciativas de treinamento e desenvolvimento de pessoas sempre ocorreram somente para os artistas. Na administração havia apenas iniciativas isoladas do líder, diretor e fundador do projeto, agindo pontual e individualmente.

A crise na governança da associação Doutores da Alegria se revelava na desmotivação dos administradores e na incredulidade quanto a possibilidades de desenvolvimento e participação nas decisões estratégicas da organização. Reuniões mensais com todo o grupo de atores pontuavam os momentos de decisão mais críticos, sempre marcados por informalidade e alto envolvimento afetivo. Raramente qualquer membro da administração participava dos fóruns de decisão, mesmo com o crescimento das atividades, em quantidade e em complexidade de tarefas. Isto equivale a dizer que os administradores estavam sendo chamados a lidar com questões administrativas cada vez mais complexas, sem qualquer treinamento formal e sem ter representação em qualquer decisão que envolvesse o futuro da organização.

Neste contexto, estabeleceu-se a necessidade de criar processos que motivassem o entrosamento entre atores e administradores. Buscava-se reencontrar nos colaboradores a motivação de trabalhar em uma organização cuja missão é levar alegria, fato que sempre deu a tônica do grau de comprometimento com o trabalho.

Uma vez tomada a decisão de conduzir um trabalho para identificar as causas dos conflitos e a perda de entusiasmo, foi necessário entender o conjunto de princípios que estavam na gênese dos Doutores da Alegria, presentes no trabalho dos artistas: visão, missão, valores e formas de proceder de cada membro com relação à participação no processo de tomada de decisão.

Visão: A Arte em Espaços Inusitados

A visão dos Doutores da Alegria é levar a arte a lugares inusitados e promover transformações na realidade a partir dela. Os artistas acreditam que teatro não acontece apenas em auditórios e salas de espetáculo. A arte pode estar em qualquer lugar e, com ela, indivíduos podem proceder a mudanças no ambiente ou em seu próprio modo de agir e pensar (Massetti,1998).

Missão: Alegria

A missão dos Doutores da Alegria é levar alegria à criança hospitalizada, seus pais e profissionais de saúde através da arte do teatro clown. Nenhum outro público lhes interessa. Os artistas recebem formação para atuar no universo hospitalar, adaptando uma técnica artística originalmente desenvolvida para grandes espaços, como um picadeiro. Desta forma, o grupo visa integrar a arte como fonte de saúde a crianças hospitalizadas, imersas em ambientes de doença e marginalização.

Valores: Entusiasmo, Humor e Olhar

Em trabalho anterior, o grupo de artistas (sem os administradores) havia definido os seguintes pontos como valores para o desenvolvimento da organização: o entusiasmo, entendido como a capacidade de encarar obstáculos como recursos; o humor, no sentido de que qualquer situação é passível de ser risível; a capacidade de olhar, escutar, conhecer o outro e suportá-lo em suas necessidades. Estes são, também, os princípios do teatro clown, técnica artística em que o olhar tem importância destacada, assim como a capacidade de seguir o outro na brincadeira, pois é isto que dá o tom às gagues e interações (Massetti, 1998).

Participação e Processo Decisório: Desenvolvimento da Nova Estrutura de Governança

Faltava, portanto, estabelecer processos de participação que envolvessem a equipe da administração. Com este intuito, o trabalho começou por envolver a equipe da administração, abrindo espaço para expor conflitos, dificuldades e obstáculos. Posteriormente, outro projeto cuidou da interação de artistas e administradores.

O primeiro problema apontado pelos próprios administradores referia-se ao fato de não se perceberem como participantes da mesma organização que os artistas. Alguns nunca sequer haviam visto o trabalho nos hospitais, fato que chocou a todos. A equipe passou a usar a sugestiva frase vamos criar uma organização clown! como o mote promotor de ações para disseminar os princípios.

Na seqüência, o problema a ser tratado referia-se à percepção de que o trabalho crescera em quantidade e complexidade, sem que houvesse ações de treinamento. Nesta fase, foi necessário estabelecer um procedimento formal, por meio do qual fosse possível conhecer a natureza do trabalho de cada um e levantar suas necessidades de aprendizado. Assim, cada colaborador produziu um texto em que explicava em detalhes a natureza de suas tarefas e responsabilidades. Tal texto tornava-se a base para discussões sobre desempenho e necessidades de apoio para desenvolvimento profissional. Uma vez que cada colaborador havia preparado esta auto-avaliação, passou-se à discussão em grupo, de modo que cada um pôde expor-se, receber a contribuição dos outros colaboradores e, por sua vez, colocar sua própria opinião em relação ao trabalho dos demais.

O processo de "dar e receber retorno sobre seu trabalho" ocorreu de maneira a permitir nova forma de tomada de decisão, envolvendo a todos. Ao invés de o fundador se colocar como ator principal da decisão, foi substituído por um grupo, incluindo ele próprio, de quatro pessoas reconhecidas como líderes por toda a equipe. Desta forma, foram criados dois grupos, sendo um deles formado pelos quatro em papel de liderança. A estrutura de governança em dois grupos descaracterizou o perfil do decisor único, devolvendo a cada colaborador a responsabilidade por seu desenvolvimento na organização e participação no processo de decisão. Este procedimento viabilizou diálogos pautados não por simples queixas pessoais, mas sim por uma visão maior de cada indivíduo, olhando e apoiando o outro em seu desenvolvimento. Ao final do processo, cada membro da equipe teria de tomar as observações que elaborou ou que recebeu e traçar planos de ação para seu desenvolvimento dentro da organização.

Dentre os dez membros que participaram do trabalho, apenas um optou por se retirar da organização, após o processo. Todos revisaram suas responsabilidades e procederam a um planejamento de desenvolvimento profissional.

Um ano após esta experiência, verificou-se que houve uma série de iniciativas de treinamento baseadas no plano de ação realizadas por cada um no processo de avaliação. Conflitos e atritos com o fundador, exigindo reconhecimento, diminuíram sensivelmente, substituídos por envolvimento e demanda por recursos para pôr em andamento o plano de ação que cada um desenvolvera, a partir do trabalho com o grupo.

Do Empreendedor Coletivo à Governança Participativa: Reflexões sobre o Caso Doutores da Alegria

Malo (2001) desenvolveu o conceito de empreendedor coletivo ao tratar de cooperativas, tipo de empresa da economia social, cujo estatuto e contrato social exigem processo decisório democrático: um membro, um voto. A disposição das instâncias de decisão de forma democrática responde, portanto, a um imperativo legal. Adicionalmente, um dos ideais presentes nos empreendimentos econômicos solidários, tal como as cooperativas, reside em que a democracia não se dá apenas pela manifestação da vontade da maioria, mas também pela promoção dos direitos das minorias. Por isto é fundamental que a definição das instâncias de decisão esteja acompanhada por uma dinâmica ininterrupta de conhecimento dos princípios entre os membros (Vienney, 1994). Essas lições oferecem aprendizado para outras organizações sem fins lucrativos, mesmo que não sejam cooperativas. Este é o caso, por exemplo, da associação Doutores da Alegria.

O estudo de caso apresentado neste artigo não analisou uma cooperativa, mas uma organização, cujo perfil se aproxima muito do que Defourny (2001) definiu como empresa social, descrevendo um fenômeno organizacional com diversas características, entre elas a natureza participativa do processo decisório. São elas organizações que não existem particularmente com o fim de reivindicação (advocacy organizations), ou para captar e redistribuir recursos, como as grant makers, mas sim para produzir serviços em bases contínuas, com gestão independente do Estado e de agente privado ou mantenedor externo. Contam com um corpo de colaboradores voluntários e remunerados, para que haja continuidade do trabalho. Tomando o caso dos Doutores da Alegria, tem-se que a autonomia e a profissionalização estão na base da organização de um serviço voltado para o bem-estar social. Por tal motivo, consideramos que a associação possui características semelhantes a empresas sociais e de economia social, o que torna válido utilizar o conceito de empreendedor coletivo para ela também. Ainda que haja diferenças entre cooperativas, empresas sociais e associações como os Doutores da Alergia, há também muitas semelhanças, entre elas o desenho de estruturas de governança solidárias, democráticas e includentes.

Levar alegria a crianças hospitalizadas requer viver a alegria como valor, um princípio de ação. Neste sentido, recompor a auto-estima da equipe de administradores dos Doutores da Alergia e asseverar sua importância no crescimento da organização era imprescindível para a continuidade da associação.

A estrutura de governança, baseada em dois grupos, desfez a lógica de centralização da decisão e reforçou uma identidade comum entre todos os membros. Tal maneira de dispor as instâncias de decisão tornou possível implicar todos os membros no processo de tomada de decisão como co-responsáveis. A estrutura descentralizada e participativa também diluiu conflitos anteriores e viabilizou processos de aprendizagem organizacional, através das trocas entre os membros.

A contribuição do conceito de empreendedor coletivo, conforme é proposto por Malo (2001), oferece algumas proposições para o desenvolvimento de estruturas de governança em organizações sem fins lucrativos.

A primeira proposição é estabelecer um conjunto de princípios que vão animar os atores no processo decisório estratégico, qual seja a visão, a missão e os valores da organização. A gestão não é função de um indivíduo, mas de um grupo que compartilha princípios. Estabelecer um conjunto de princípios não tem por intenção obscurecer conflitos, que são inerentes aos processos compartilhados. Ao contrário, intenta fortalecer a identidade do grupo, esclarecendo os motivos de existir.

A segunda proposição é encontrar um desenho para as instâncias de decisão. A participação não depende apenas da vontade do sujeito, mas de estruturas de vinculação, de fóruns que promovam o debate, a comunicação e a troca entre os atores. Não é fácil compartilhar e exercer o poder, mas este exercício pode ser viabilizado, se cada sujeito encontra um caminho para se colocar no processo decisório.

A terceira proposição é desenvolver competências para atuar em modelos de organização nas quais se encontra um alto nível de ambigüidade. Analogamente ao processo cooperativo estudado por Desroches (1976), empresas sociais e associações existem em meio a situações de eterna tensão entre mobilizar-se por um ideal ou missão e ao mesmo tempo alcançar patamares de desempenho que viabilizem a sobrevivência econômica da organização.

Doutores da Alegria é uma organização que produz serviços artísticos inovadores, em bases contínuas, com trabalho assalariado e voluntário e sofre concorrência de natureza diversa, dadas as múltiplas alternativas que investidores sociais encontram no Brasil. A natureza do processo decisório é, na origem, informal e, de certa forma, participativa. No entanto, o colapso entre os mundos dos artistas nos hospitais, e dos administradores no escritório da sede, estimulou a marginalização dos não artistas no processo decisório. Isto só ficou patente com o crescimento das atividades.

O caso ilustra que os princípios já estavam estabelecidos, porém careciam de sentido a uma parte da equipe. O desenvolvimento de instâncias de decisão e a dinâmica de avaliação participativa devolveram a cada membro a responsabilidade por si e por toda a organização. Temos, portanto, que as três proposições aprendidas com o conceito de empreendedor coletivo valeram, aqui também, para o desenvolvimento de estruturas de governança.

Conclusão

As questões iniciais de pesquisa para este estudo versaram sobre a natureza do conceito de governança e de suas implicações para organizações sem fins lucrativos.

Uma primeira revisão da literatura sobre o conceito nos mostrou que ele é tratado por múltiplas áreas do conhecimento e segundo diversas perspectivas teóricas. Identificamos nesta primeira etapa dois grupos teóricos principais. O motivo da classificação dual residiu na constatação de que uma parte da literatura dá especial ênfase a governança, enquanto desenvolvimento do papel e responsabilidade do conselho de administração, em garantir práticas de controle e transparência na gestão das organizações (Duca, 1996; Houle, 1989; Ingram, 1988; Malefant, 1999; Middleton; 1987). Outra parte confere maior atenção às questões sobre o exercício do poder, em processos decisórios participativos e solidários (Fisher, 2002; Malo & Vezina, 2003; Malo, 2001, 2000b; Saidel, 1998; World Bank, 1992).

Uma segunda revisão da literatura foi feita após a apreciação do trabalho de Cornforth (2003). Este autor identifica seis perspectivas teóricas que tratam do conceito de governança. São elas: a teoria da agência (the agency theory), the stewardship theory, a teoria da dependência de recursos, a perspectiva democrática, a teoria dos stakeholders e a teoria da hegemonia gerencial.

Os resultados desta segunda análise da literatura nos permitiu concluir que a abordagem da governança como conceito sempre relacionado às práticas do conselho de administração são, de fato, as mais freqüentes. Isto se deve à disseminação das idéias propostas pela teoria da agência (Eisenhardt, 1989; Monks & Minow, 2003).

Há, no entanto, uma perspectiva teórica que não foi contemplada no trabalho de Cornforth (2003), mas que já havíamos identificado em nossa primeira revisão de literatura. Tal perspectiva advém, sobretudo, dos desenvolvimentos teóricos propostos para o conceito de governança pelos autores de língua francesa da economia social. Esta abordagem não negligencia o controle, porém dá mais atenção à criação de comportamentos solidários e éticos nos relacionamentos entre todos os atores relevantes envolvidos.

Este trabalho aprofundou a compreensão desta perspectiva teórica sobre governança como exercício do poder compartilhado. Desenvolveu o quadro teórico que ampara as idéias da economia social e procedeu a um estudo de caso, utilizando tais idéias como referência de análise. Desta forma, o presente estudo tratou da estrutura de governança como fonte de identidade organizacional e compartilhamento do poder.

Dentre as contribuições que o estudo de caso nos pode oferecer, salientamos que definições como visão, missão, valores e quem deve participar dos processos de decisões podem ser consideradas como a base de qualquer orientação estratégica; porém, se o que se quer é desenvolver uma organização com natureza participativa em seu processo estratégico, não basta fixar os princípios. É necessário dinamizá-los em ações que impliquem a mobilização e engajamento dos atores organizacionais.

Neste sentido, estruturas de governança em empresas da economia social têm uma lição a dar, pois possuem processos decisórios abrangentes todos os membros têm o direito de se manifestar em alguma das instâncias de decisão e significativos, pois o que mantém os membros nas cooperativas e associações é a força de um o ideal comum, dada a eterna ameaça de opção por empreendimentos na economia de mercado.

O caso Doutores da Alegria elucida que uma associação ou empresa social, tal qual uma cooperativa, sofre intensas ambigüidades e rupturas em seus processos organizacionais. Por isso é pertinente estabelecer fóruns de comunicação e preparar a equipe para os desafios de decisões partilhadas e enfrentamento de situações em que os paradoxos entre o ideal da organização e as necessidades da operação afloram e geram processos de crise.

Organizações sem fins lucrativos, cooperativas, associativas, comunitárias ou empresas sociais necessitam desenvolver processos decisórios participativos pautados por visão, missão e valores compatíveis; mas, sobretudo, que contenham estruturas de governança que permitam o engajamento dos membros e sua motivação e mobilização não só para a causa, mas também para a gestão da própria organização.

Artigo recebido em 05.05.2004.

Aprovado em 28.03.2005.

Andréa Leite Rodrigues - Doutora em Administração pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), foi pesquisadora visitante no Centre de Recherche sur les Innovations Socialles (CRISES) da HEC-Montreal, do qual participa agora como membro-pesquisador. Professora do Programa de Mestrado em Administração da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Seus interesses de pesquisa estão em estudos organizacionais, com interesse particular por abordagens que utilizem teoria institucional e teoria da estruturação. Além disso, estuda e trabalha com temas envolvendo organizações sem fins lucrativos e métodos de pesquisa qualitativa em gestão. Endereço: Rua Paracue, 18 22, Bairro Sumaré, São Paulo/SP, 01257-050. E-mail: andrealeite@mackenzie.com.br

Marie Claire Malo - Professora titular da HEC-Montreal. Diretora do núcleo da HEC-Montreal do Centre de Recherche sur les Innovations Socialles CRISES. Professora nas áreas de gestão de organizações cooperativas, associativas e comunitárias e em estratégia empresarial. Suas áreas de interesse em pesquisa são organizações da economia social, governança, gestão estratégica e inovação social. Endereço: Service de l'enseignement du management, École des hautes études commerciales (HEC), 3000, chemin de la Côte-Sainte-Catherine, Montreal (Québec), Canada H3T 2A7. E-mail: marie-claire.malo@hec.ca

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2008
  • Data do Fascículo
    Set 2006

Histórico

  • Aceito
    28 Mar 2005
  • Recebido
    05 Maio 2004
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